terça-feira, setembro 09, 2003

“Quero ser um vagabundo”, se ao menos tivesse a coragem de dizer isso, pensava ele, apenas “va-ga-bun-do”, um libertar de pulmões, abrir a glote e as cordas vocais e soar algo semelhante a isso. Ser como aquele tipo que tanto leu na sua juventude, o Al Berto, mas não tanto como ele, mas sempre semelhante a ele, andar sem destino, um verdadeiro vagabundo, realmente ir a outros lugares, não ficar, só os cadernos, livros, canetas e memórias o poderiam perseguir, eternamente, tal como a vontade de sair daquele lugar, para um outro lugar.
Chegar a casa e dizer adeus aos familiares, depois aos amigos, depois à cidade, depois ao emprego seguro, a um casamento, à possibilidade de ter filhos (de os ver crescer e cuidar deles), de ter um carro, um cão e um gato. Ir, não por causa deles, aqui, em particular, noutro sitio seria igual, mas por ele querer ir, não olhar para trás e transformar-se em sal e água e evaporar-se de mágoas. Apenas transportar o mínimo, na pele, na mochila e na cabeça, esperar que algo aconteça, todos os dias, iguais, aí, apenas aí, sem significado em especial, igual ao dos outros que ficam, a mesma coisa, mas não aí, noutro lugar, com outras pessoas, aquelas que nunca conheceu.
A coragem é que falta, de dizer “eu sou um vagabundo e parto hoje!”. Ficar aqui, por causa dos outros, apenas por causa dos outros que o querem amarrar a este sitío, mas não verdadeiramente a esse sítio, mas ao seu egoísmo de necessitarem da sua presença, de exigirem a sua presença para se sentirem bem, por terem perdido o rumo algures no seu caminho, e em vez de terem apanhado o autocarro, ficaram em casa a dormir e o tempo foi passando e passando, sem de darem conta, enquanto uma dor os acorda, um dia, cheios de rugas, velhos, caducos e sem energias, nem sequer para se levantarem da cama, ir à casa de banho, levantar um copo ou de gritar com todos os pulmões “QUERO SER UM VAGABUNDO DA VIDA!”. O que apanhou o autocarro e pensou que fugia, morreu muito tempo antes, numa qualquer sarjeta, que tantas há por essas cidades espalhadas pelo mundo fora , ou numa esquina de uma qualquer cinzenta cidade com over-dose de lugares e drogas, ou gelado, no passeio de uma metrópole fria, ou nos milhares de sítios onde nunca se decidiu quedar.
Já é tarde, é tempo de dormir, e mais uma vez não disse nada a ninguém, não consegue, nunca conseguirá, não à frente deles, se calhar um dia quando se levantar do sofá, enquanto o Benfica tiver a ganhar ao Porto, dirá que vai comprar cigarros e já volta… depois enviará um bilhete, passado uns anos, de uma qualquer terra, de que não sabia poder existir, aonde se lembrou das pessoas que foi deixando ao longo da vida, onde eles tinham sido os primeiros a conhece-lo e os mais distantes no tempo a terem sido abandonados, para mais tarde serem relembrados, como a inocência perdida, como uma marca que nunca mais sara, por estarem sempre lá, apesar de já não viverem, mas isso não interessa, ninguém realmente está vivo.
Aqui ou noutro sitio qualquer é indiferente, o que importa é o dia em que o autocarro apita à tua janela, espera por ti, mas tu adormeces, ou acordas e apanhas ou perdes essa viagem. Ele não sabe quando esse dia virá, mas espera que não adormeça e tenha coragem de pegar num saco, num par de calças, um casaco, uma camisola e umas camisas e que não se esqueça da caneta e do papel para apontar tudo que vai sentir, como tem feito toda a sua vida.

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