O seu sotaque não enganava. Apesar de ter um ar ansioso, falar rápido, o seu sotaque traía-o. Falava rápido e parecia não conseguir parar de o fazer. Vinha-lhe à cabeça o que de bom havia lá e o que de mal existia onde estava. Galgava os poucos metros livres existentes à sua volta a uma velocidade constante, comparável ao ritmo da cadência com que as palavras saíam pela sua boca.
“Lá, nenhum médico trata da burocracia. É a assistente social. O médico não trata nada disso. Não como aqui.”
Ela respirava com dificuldade. Eram cinco da manhã mas não aguentava mais. Não conseguia adormecer com aquele ruído que vinha do seu interior. Levantou-se e pôs-se a caminho acompanhada apenas com um saco de plástico onde pôs os medicamentos que tomava.
“Quatro puffs de salbutamol, atrovent, hidrocortisona e aminofilina. Nos EUA já não se usa, melhor é controverso o seu uso mas como o Sr. Dr. cá do sítio diz que se deve usar, usa-se. Não é assim?” esvaziava ele o seu interior através deste processo de nunca parar de falar. Olhou para a mulher à sua frente, que o escutava de olhos bem atentos mas que denotavam uma incompreensão no discurso recebido, e esperou.
Ela apenas um sorriso esboçou, tossiu e no meio desse acesso disse muito roucamente “Se o Sr. Dr. diz!” e sorriu com as faces ruborizadas pelo esforço.
“Pois! Mas no Amadora Sintra já nada disto se faz. Aquilo é que é ter condições. Aqui não.”
A senhora continuava a olhar para aquele doutor com um sotaque que o traía mas que já não se importava de envergar. Usava-o já com orgulho de o ter, de o identificar ao seu país de origem, bem distante dali, com o qual já não sonhava. Com uma máscara entretanto posta em redor das suas vias aéreas, a senhora passou de uma banal senhora a dias para alguém com um aspecto exótico para não dizer alienígena. A tosse tinha passado, a que a tinha obrigado a vir ao hospital por não a deixar dormir em paz, e olhava com ternura para aquele doutor estrangeiro, que falava com aquele sotaque que não lhe caía nada mal. Esforçava-se por acompanhar aquela melodia monocórdica que da sua garganta debitava.
“Já não quero voltar. Já não há nada para voltar. Este agora é o meu país.”
E continuou a falar, mesmo sabendo que a senhora que tinha estado a olhar para ele, tinha pousado as pálpebras uma sobre a outra, escondendo os seus olhos e seguramente que recuperava o tempo perdido. Os seus colegas também não o escutavam. Tinham escolhido as melhores macas vazias e lá deitado os seus corpos a repousar, naquelas horas mortas. A enfermeira retirava-se para junto dos seus colegas após ter realizado todas as manobras demandadas pelo médico “adeus. Se precisar de mim estou na sala de enfermagem. Boa noite.”
“Um amigo meu disse-me que ganhava num mês o que eu ganhava num ano. Não pensei duas vezes…”
Tal como ele, ninguém que anteriormente o escutava pensou duas vezes, deixaram-no sozinho, com os seus pensamentos em voz alta e o seu sotaque, a vaguear por entre os corredores repletos de macas e doentes, alguns a gemer e a maioria a dormir. Continuava a mexer a boca, com as características daquele seu sotaque, mas não procurava ninguém em especial que o escutasse, a ele e ao seu sotaque. Realmente não sabia o que lhe interessava, mas estava numa fase da sua vida em que se sentia bem em falar, mesmo que sozinho, enquanto galgava metros atrás de metros, à cadência das palavras que brotavam da sua boca. A cada passo mais longe se sentia da sua casa, cada vez mais incorporado no seu novo sotaque, cada vez mais traído por ele, cada vez mais orgulhoso dessa traição, cada vez mais feliz nessa sua alegre loucura…
“E qual é a diferença entre hipoxia e hipoxemia? Exacto. Não sei, nunca compreendi essa diferença na vossa língua…” ecoavam o seu sotaque e a cadência dos seus passos.
terça-feira, fevereiro 22, 2005
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2 comentários:
«A enfermeira retirava-se para junto dos seus colegas após ter realizado todas as manobras demandadas pelo médico (...).» Ai! Acho que não vou comentar,Onun.
«“adeus. Se precisar de mim estou na sala de enfermagem. Boa noite.”» É certamente o contrário que acontece! Dás a ideia que são os médicos que andam a bater chinelo! Bah! Nós é que vos chamamos!!
«“E qual é a diferença entre hipoxia e hipoxemia? Exacto. Não sei, nunca compreendi essa diferença na vossa língua…”» Agora, 'tou curiosa por saber qual o país que não diferencia esses (mais que) conceitos!
Espera. Vou comentar. Então, a enfermeira não sabe o que é da sua competência?! Quem nos supervisiona é a nossa consciência.
E não tentes fazer o contrário, pois não é esse o caminho.
Sabes: nos EUA, os profissionais de Enfermagem também exibem um estetoscópio no pescoço! Almoçarias na cantina trajando um, caso cá fosse como lá?!
(Nightingale curto-te bué, mas a tua contemporânea Bedford era sábia! A primeira enamorou-se por um médico e daí a história a posteriori da Enfermagem europeia... posturando-se submissamente!)
Os meus textos nunca são para ser tomados como realidade, não espelham nenhuma realidade, para além de algum espelho que distorço, o meu, enquanto escrevo por isso abstenho-me de responder aos teus comentários em termos de realidade expressa.
Partes das frases foram apanhadas no ar, por isso foram realidade, não naquele contexto, talvez similar, mas impossivel de transmitir.
Mas o que interessa é que sentiste algo ao ler o texto, com a tua específica visão de dentro, neste caso, como futura enfermeira.
Fica bem que eu vou ler antes de dormir..inté
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