domingo, agosto 15, 2010

Herr Gryphius

M. dormia, mas raramente sonhava, pois era contra essas coisas que lhe complicavam a vida. Mas um certo dia, sem qualquer explicação, acordou com um poema de um tal de Gryphius, do qual nunca tinha ouvido falar e que lhe falava numa língua estranha, mas que só compreendia em sonhos. Esse tal de Gryphius surgia-lhe no sonho a declamar sempre o mesmo poema, vezes sem conta ao seu ouvido, pois considerava que era o seu melhor poema.

Der schnelle Tag ist hin …” começava ele. Mas M. não era da mesma opinião que esse senhor, que nunca tinha pedido para surgir na sua vida, muito menos nos seus sonhos, dos quais não gostava de se recordar, como tinha acontecido até então na sua vida.

“Diß Leben kömmt mir vor als eine Renne-Bahn”, dizia o poeta a meio, o que afectava intensamente M. Passava os dias incomodado. Incomodado com o relógio, com as pessoas do trabalho, com os seus amigos, com o escasso tempo de luz e sol. Ao mesmo tempo surgiam ideias que nunca tinha equacionado para a sua vida como mudar de trabalho, porque o aborrecia, e sonhava com uma vida diferente, mas da qual não tinha qualquer tipo de ideia como fosse. Apenas queria uma vida onde não sentisse que ela tivesse escorregado por entre as suas mãos como grãos de areias.

“Und wenn der letzte Tag wird mit mir Abend machen”, a vida afinal é só dia, sem qualquer possibilidade para repetições e estes eram os seus últimos raios de luz da sua vida. Este fatalismo por parte do poeta inquietava M., que não gostava de filosofia nem de política. Gostava de dormir com a intenção de descansar o corpo para o dia seguinte, porque este não aguentava mais que 2 dias sem dormir, pois já o tinha experimentado. Ao terceiro dia dessa experiência, passou a sentir que para além das pessoas, os objectos e os animais falavam com ele. Todos eles estavam a par dos seus problemas, o que o incomodou. Devido a isso, chegou à conclusão que a exaustão do corpo deixava as suas protecções psíquicas fragilizadas. Daí a razão do dia só ter 24 horas e não mais que isso.

Mas o Sr. Gryphius, que agora controlava os sonhos de M., repetidamente dizia a M. que a vida era um dia, apenas um dia. Que ela passa a correr e só no final da corrida é que as pessoas percebem que ela já está a acabar.

Hoje em dia, M. já quase não dorme, não porque queira enganar o tempo, mas porque não gosta muito do Sr. Gryphius – o tal que surge nos seus sonhos a repetir sempre o mesmo poema. Em vez disso, passa grande parte da noite a rever o seu álbum de fotografias compilado pela sua mãe e algumas vezes consegue voltar a adormecer, sem sonhos onde o tempo volta a escapar suavemente por entre os dedos da mão.

Berlim, 7 de Abril 2009

‘Abend’ de Andreas Gryphius (autor barroco do séc. VII)

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