Naquele dia, algures há alguns anos atrás, tempo referido por ele como “quando eu era um puto”, tinha pensado em cortar os pulsos, naquele instante, precisamente naquele dia, marcado por isso. Lembra-se perfeitamente onde isso ocorreu, ao som da voz de Ian Curtis, o vocalista, enforcado ao som de Iggy Pop, dos Joy Division (eufemismo para grupo de raparigas forçadas a alegrar os altos comandantes da SS e GESTAPO, todas elas mulheres de altos traidores da grande nação germânica) enquanto dançava nos States, mesmo em frente à segunda coluna a contar da direita, localizada em frente do bar. O ambiente estava escuro, como sempre, as pessoas eram as mesmas de sempre, os “punks” da praça, os “freaks” do ex-mozambique bar, os “betos” que acompanhavam os amigos “esquisitos” e ficavam viciados na atmosfera, tal como os heroinómanos que por lá andavam, também eles a saltar, os “metálicos”, poucos mas existiam, os “rockabillies”, os trintões barrigudos da geração anterior, os míticos e os “zés ninguens”, todos juntos no meio da pista e o resto a mirar, a embriagar-se, a drogar-se, a alhear-se do que se passava fora daquele buraco, um recanto acolhedor.
Mas naquele dia a musica dos Joy Division, só podiam ser eles, bateu juntamente com o coração dele, parecia que estavam sincronizados, parecia que a musica era dedicada a ele, não era a “Love Will Tear Us Apart” (a pior musica de sempre deles) – apesar de se adequar bem, porque o problema era o todo menos invulgar amor, traição de um amigo por parte dele e da namorada do traído, mas não havia solução possível, ela preferiu agarrar os dois, um como namorado, o outro como amante. Telefonemas, encontros, férias, propostas tentadoras, que um dia furaram a barreira e causaram com que a voz de Ian Curtis, nesse dia, debaixo do grande globo forrado com pequenos espelhos quadrados, penetrasse como uma faca e matasse a dor, trespassasse os pulsos e acabasse com o sofrimento. Isso dizia ia:
“Walk in silence/ Don’t walk away, in silence/ See the danger/ Always danger/ Endless talking/ Life rebuilding/ Don’t walk away/ Walk in silence/ Don’t turn away, in silence/ Your confusion/ My illusion/ Worn like a mask of self-hate/ Confronts and the dies/ Don’t walk away/ People like you find it easy/ Naked to see/ Walking on air/ Hunting by rivers/ Through the streets/ Every corner abandoned too soon/ Set down with due care/ Don’t walk Away in silence/ Don’t walk away”
A dor a cada toque no telefone, que nunca mais parava de fazer barulho, ele queria que acabasse, e a musica “Atmosphere” englobava tudo e fornecia juntamente com a embriaguez, a energia para pegar numa faca…É hoje, pensou ele na altura, é hoje que me livro deste sofrimento. Olhou para os lados e apenas via as luzes que saltavam com a musica, nenhuma faca, também não queria deixar a musica a meio, por isso continuou no mesmo sitio a abanar-se, juntamente com o cantor enforcado e o seu disco de Iggy Pop a tocar, a mulher a aparecer em casa, com a filha no colo e encontrarem-no pendurado ao tecto. Uns dizem que foi por causa da epilepsia, outros diziam que fingia, era apenas performance, mas teve a coragem e já Álvaro de Campos dizia:
“Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serva o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente
…”
Mas ele continuou a respirar depois da musica ter acabado, e já estar uma outra qualquer musica a vibrar nos seus ouvido, as luzes continuavam a piscar para ele, a atraí-lo, a ideia de uma morte jovem, bela e feliz ficou a pairar no ar, naquela musica, naquele dia juntamente com a voz de Ian Curtis, ele apropriou-se da vontade e nunca mais a devolveu.
Sempre que estava mais só, ouvia a voz dele e sentia-se melhor, aquele que lhe tinha roubado a vontade de cortar os pulsos, a fazer-lhe companhia, a lembra-lhe que a vida é triste e que se deve caminhar em silêncio sem olhar para trás.
Neblina Castanha(em memória a Ian Curtis e aos Joy Division)
sexta-feira, setembro 05, 2003
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