O coração já não batia, sabia eu, mas só se confirmou mais tarde. Por mais que eu afirmasse, o electrocardiograma teimava em contradizer-me e a dizer que para além de umas ondas anómalas, já estudadas como variantes de um normal prolapso anterior da mitral, assintomático, ele estava lá, o batimento, rítmico que nem um relógio certeiro, 60 batidas por minuto. Devido à minha insistência de reafirmar que ele já não batia, o médico pregou-me com um sermão,
“Nada de mal existe com o seu coração. Esta inversão de onda já está explicado, não tem alterações do ritmo sinusal, o electrocardiograma mostra os batimentos, eu consigo-o ouvir através do estetoscópio e o senhor não têm queixas. Não tem nada, como já lhe disse!”
No início teimei, é verdade, de que nada batia dentro do meu peito, tinha-o acabado de comprovar, mas compreendi, com o tempo, que falava com o técnico errado. Deixei-me de lamuriar, anuí ao médico e aproveitei para que ele me passasse um atestado médico, queria fazer desporto federado e para o fazer é necessário tê-lo, o coração e o atestado a dize-lo, que o coração bate. Ao menos a consulta não tinha sido totalmente um fracasso.
Saí sem pagar, estava absorvido em pensamentos, consultei o perito em corações errado e lembrei-me de uma amiga idosa da minha avô que se fartava de dizer que tinha uma dor na alma, não era possível de ser observado por qualquer parafernália médica, era simplesmente uma dor na alma, ponto final! Já tinha desistido de consultar médicos, não havia meio de a sentirem, mas ela está cá. Como era pequeno acreditava, mais ainda agora.
Tomei isto como um aviso e por isso resolvi ter um tempo a sós, só eu e o meu coração. Escolhi um café onde não pudesse ser incomodado, pedi uma cerveja e tive que beber pelos dois. Ele deu-me sinais de vida, bombeou algum sangue para as minhas gélidas faces e disse:
“toma lá um pouco de vida, bem o estás a precisar”
Não respondi, não precisava de o fazer, ele conseguia ler-me o pensamento, na verdade ele fazia parte do mesmo corpo que eu.
“Sabes que vais morrer, não sabes?” disse-me ele. Sim sei, não precisas de me dizer isso, “mas não vai ser agora, não da minha parte, ainda tenho muito para dar e receber, muito sangue para bombear, por isso não te preocupes, parei apenas momentaneamente, estava farto de o fazer. Sabes, é monótona esta minha vida, sempre a bater, de quando em quando mais rápido, mais acelerado, mas existem momentos que mais nada me excita e paro, simplesmente.”, a sua conversa confortava-me, lembrei-me que quando era muito pequeno, no tempo que já não me lembro, passava horas a falar com ele, mas parámos de o fazer, também não me lembro quando isso aconteceu, nem o porquê. Ele continuava a falar comigo, um autêntico monólogo, ele já sabia tudo o que eu pensava, perguntava coisas, sabendo de antemão a resposta e prosseguia.
“Hoje tiveste a certeza que já não batia, fico feliz por isso, mas porquê hoje? Eu sei, não me digas nada, eu também lá estava, senti o mesmo que tu. Existe um tempo para tudo, só sabemos da bonança depois de uma tempestade, sempre foi assim a vida das pessoas, mesmo se depois menosprezam o passado menos bom e a sua influência no presente. Sentir a tristeza é apenas um meio de puder sentir a felicidade. Escuta, disto sei eu do que falo, aprende com o que sentes, mas não te prendas a eles, todos são passageiros, como todo o sangue que passa por mim, é apenas um meio de atingir o fim que é irrigar os tecidos, de excitar os neurónios, de aquecer as tuas faces…”.
O monólogo continuou durante horas, eu ia bebendo as cervejas. O sangue que corria pelo coração, cada vez tinha maior teor de álcool, ele agradecia, a sua voz fluía com uma maior lucidez pela minha cabeça. A luz lá fora apagou-se e ao mesmo tempo foram-se acendendo os sóis artificiais, em cada passeio, reflectidos nas mil poças por onde os carros passavam. As pessoas voltavam a casa cansadas, eu também começava a ter alguma vontade de me aquecer nos meio dos lençóis, ele, o coração, foi abrandando a velocidade com que ia debitando palavras, estava a chegar ao fim, tinha noção disso e não sabia se voltaria a ter outra oportunidade para falar com ele.
“e chegou também a minha hora de descansar, vou-me calar e nunca mais vais-me escutar, apenas me sentiras no pulsar e no futuro enfarte que irás ter, daqui a muitos anos, não te preocupes. Nesse dia voltarei, para te acompanhar nesse fatídico dia, não te preocupes eu dir-te-ei a verdade sobre mim mesmo, não oiças os médicos, eles não passam de uns mentirosos, tu bem sabes disso. Gostei muito de conversar contigo, cuida-te.”
E a pequena luz que envolvia o meu tórax apagou-se. Paguei as cervejas e fui-me embora, conduzi até casa, mas não me lembro por quais ruas obriguei o meu carro a sobrevoar. Em casa entrei com uma chave mágica, porque também não me lembro de ter aberto as portas, fui directo para a cama, pensei eu, mas no dia a seguir estava enviado no pijama e dormi um sono sem sonhos, aqueles em que a realidade ultrapassa o mundo imaginário das nuvens e já não existem razões para eles continuarem a existir, os sonhos.
sexta-feira, outubro 24, 2003
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