sábado, outubro 11, 2003

Uma conhecida

Estava sentado na sua esplanada preferida, com o ultimo livro a ter sido retirado da estante. Ele, o livro, falava-lhe sobre uma cidade estranha, para ele, o leitor. A personagem percorri as ruas de Nova Iorque, gostava de andar sem rumo pelas suas negras veias, mas naquelas ultimas paginas, essa estranha personagem, fazia passar-se por um detective, tudo devido a um telefonema errado, mas não passava de um farsante. Ao contrário da cidade onde lia a ficção, as ruas pareciam sombrias e repletas de pessoas apenas possíveis de ser encontradas nos livros e em cidades nunca vistas.
A chávena do café estava vazia, a água das pedras ia a meio do copo, as cadeiras à sua volta estavam vazias, não o incomodavam, assim é que gostava de estar ali. Sol das duas da tarde a bater-lhe nos finos, agora mornos, cabelos, a aquecer o sangue, o vento que os carros provocavam ao passarem rente ao passeio que albergava a esplanada, arejava os rumores de estagnação, os pássaros piavam sinfonias e o empregado era discreto, davam-lhe todo o tempo do mundo para folhear saborosamente o seu livro, este ou outro qualquer. Conseguia transportar-se com o enredo, naquele momento passeava pela West End Avenue.
Não esperava ninguém, a maioria trabalhava ou já não vivia naquela cidade.
Do outro lado da estrada, contornos conhecidos, como a palma da sua mão. Não era muito alta, nem baixa, era mediana. Tinha umas boas ancas e seios, proporcionavam uma esbelta silhueta feminina, não exageradas nem anafadas. O calor proporcionava ao desbotar, a um pouco mais de pele, um decote mais usado para a imaginação proliferar, as calças de tecido fino e frescas, deixavam ver a anatomia das coxas, nádegas e do vestuário interior. A pele ainda queimada do sol de um verão tardio, exaltavam mais as suas linhas e face, de uma nacionalidade indefinida, com uns olhos de um carvão negro, tal como o seu cabelo.
Atravessou a estrada, completamente vigiada pelos dois olhos, passou à sua frente e nada disse. O seu perfume dizia tudo, urbanismo, cosmopolita, elegante, dona de si – aparentemente- e subtil. Realmente nunca a tinha conhecido, mas sentia-se apaixonado por aquela bizarra beleza, pelo menos para o seu país. Sabia o seu nome, através de inquirições que fez junto de amigos influentes (amigos mais atrevidos), mas não o usava pronunciar, era demasiado poderosos para o seu fraco coração de um amante platonicamente apaixonado pela rapariga da mesa do lado, sempre aquela que não falava ou não conhecia ou que lhe dava com os pés, subtilmente, porque não era homem de andar de joelhos por uma mulher, ainda possuía alguma dignidade herdade do pai.
Era verdade, a sua fixação por mulheres irrealistas e impossíveis, desde cedo agarrou essa característica para si e nunca a mais a largou, sentia-se mal sem ela e não gostava que os outros o conhecessem, principalmente elas. Quanto menos soubessem dele, melhor, mas também nunca tinha proporcionado a nenhuma a possibilidade de o conhecer.
Mas aquela! Sentia que havia algo de especial nela. Nunca a tinha visto com um namorado, pelo menos um rapaz que ao seu lado agisse como tal. Muitos amigos parecia ter, mas preferia a companhia de amigas, mesmo assim eram poucas. Desde que a conheceu, de vista, que a observava. Não foi a sua beleza que o cativou, tão belas ou mais havia, mas com aquela beleza solitária de pessoa que prefere passar o tempo com um livro amigo, sozinha, numa esplanada, acompanhada com ginger ale - sim já conhecia alguns dos seus hábitos –, todos estes pequenos pormenores provocavam-lhe certas cumplicidades compartilhadas, afinidades secretamente partilhadas, que nem mesmo ela sabia disso ou poderia saber isso.
Reparou que ela tinha escolhido a mesa com mais luminosidade, apenas separado por quatro cadeira, ou em mesas, duas, os separavam. Ele gostava de imaginar que ela escolhia aquele café, aquele lugar, aquela hora e aquele angulo de exposição de uma forma não casual, com a finalidade de o provocar, de se fazer mais adorada a ponto de roçar uma deusa grega, impossível de ser alcançada por meros mortais. Facilmente caía na realidade, afastava o sonho e via que era mero fruto do acaso os inúmeros espaços compartilhados. A cidade era pequena demais para as pessoas que nela viviam, mais tarde ou mais cedo, mais ou menos frequentemente as pessoas acabavam por se encontrar.
Reparou que ela fumava, era a primeira vez que a via a puxar pelo fumo de um pequeno canudo branco, preso pela sua ponta acastanhada, pelos seus finos lábios encarnados. Olhava para o relógio, procurava alguém do outro lado da estrada, não conseguia ler o livro prostrado em cima dos seus joelhos, pegava no telemóvel, que estava adormecido dentro da sua carteira, ponha-o outra vez no seu leito, não tinha mensagens – dava para se perceber isto pelo fluidez que passava das suas mãos de volta à carteira -, enrolava os cabelos, mexia vezes sem conta o seu café e não parava de cruzar e descruzar as pernas.
Também ele se encontrava estranhamente atingido pela sua ansiedade, parecia que gostava de partilhar sentimentos alheios. Ao vê-la, reconhecia-se na sua impaciência a quando da não visão da sua face metade imaginada, de não saber porque é que não tinha comparecido ao encontro virtual, não programada, ficcionado, mas que as pessoas faziam parte, inconscientes dela.
O seu telemóvel tocou, o dela, não o dele, mas como sempre poderia ter sido o dele, não perdeu a oportunidade, e mirou o seu. Respondeu algo em resposta, ela, e bebeu o café calmamente, com os olhos sempre presos no telemóvel à espera do seu chamamento.
Que mensagem terá ela recebido e o que terá ela escrito, pensava ele. Como nunca o puderia saber, imaginou mil e uma situações, grandes filmes e simples recados dos pais. Gostava de naquele momento ter o número dela, para lhe enviar uma mensagem e saber qual seria a sua reacção, com ele a observa-la, sem ela saber que ele a absorvia com os seus olhos.
Entretanto ela recebeu uma mensagem, pagou o café, levantou-se e foi-se embora.
Naquele dia, o seu encontro no café tinha sido mais breve que nos dias anteriores, mas não se importava com isso, amanhã seria outro dia e haveria possibilidade de ela se redimir, sem o saber, com a sua presença naquele mesmo café. Com sorte combinaria com alguma amiga e ficaria mais tempo presa à calçada que suporta a esplanada e mais tempo lhe daria de prazer, por a sentir através da distância existente entre pessoas desconhecidas.
Amanhã de certeza que irá sorrir, pensou ele.

Sem comentários: