quinta-feira, maio 20, 2004

Pela estrada fora


A noite não estava particularmente quente, tinha chovido bastante, os sapatos estavam um pouco molhados mas nada que realmente o importunasse naquele momento de solidão. Andava com um rumo bem definido e concreto, não parar e seguir apenas naquele sentido da estrada, que alguém lhe tinha dito que era para sul e para sul seguia ele.
Os passos marcavam o ritmo dos sons que escutava, uma cadência que pretendia manter já que na estrada poucos carros passavam aquela hora da madrugada, e o ruído do som provocado pela movimentação do vento nos seus ouvidos enregelados era das poucas companhias naquele momento. O som era hipnótico, penetrava lentamente pelos tímpanos insensibilizados pelo frio e progressivamente iam tomando conta dos seus pensamentos. Tudo orientava para uma introspecção profunda da sua situação no mundo em que passeava as suas laranjas sapatilhas a quem ninguém agradava. Isso nem sequer o afectava porque não era por aí que ia conquistar amigos ou amigas coloridas, não era por aí que tinha prefigurado a sua existência na terra, não era por causa de momentos de glória ou eventual protagonismo que remetia os seus pensamentos mais profundos nem os desejava, isso só o iria condicionar ainda mais. A visibilidade só trás voyers e isso limita os movimentos mais corriqueiros e mesmo que não o observem, sentem-se sempre observados. Não era por aí que os seus pensamentos caminhavam. Eles faziam companhia naquele momentâneo instante de solidão, que engano era para quem não o observava mas vamos supor que o podiam estar a observar, porque tinha sido premeditado, uma fuga programada para o bem de quem estava com ele. Ele sabia que era para o seu bem que arrancava cada passo que dava, cada vez mais para sul, e que eles os haveriam de apanhar e com alegria relembrar aqueles momentos onde apenas a lua lhe fazia companhia e algumas luzes riscadas na noite por fugazes carros. Felizmente ainda não era Verão pois caso contrário teria a companhia das malditas melgas e algumas gramas a menos e picadas a mais. A única coisa que se via a voar eram umas rápidas sombras que passam rentes aos poucos postes de iluminação que existem espaçadamente na rua e das quais presumia serem morcegos na perseguição do seu alimento. E continuava ele o seu caminho para sul.
Cada vez mais distante do seu sítio de partida, com a cabeça cada vez mais lúcida pela depuração do álcool, olhava a escuridão de maneira diferente. Olhava para as casas das pessoas e não via ninguém, apetecia-lhe gritar e pedir que falassem com ele mas não o fazia.
Permanecia calado, não emitia qualquer tipo de som conscientemente há mais de uma hora, o último carro que tinha calcado essa mesma estrada, havia sido há mais de quinze minutos. As luzes começavam a rarear e as casas a serem mais espaçadas entre si. Não sabia o que isso significava mas não lhe agradava o sentimento pressentido.
Um carro passou lentamente por si, quase que o galgava mas nem por isso alterou o rumo do seu destino, sentiu uma brisa mais forte a tocar-lhe na pele e olhou para dentro do carro, não viu ninguém. O que queria aquilo significar? Olhou mais uma vez e não viu ninguém ao volante, pelo menos não conseguia distinguir nenhuma forma humana dentro do carro na penumbra da noite. Aproximou-se do carro, que tinha parado uns cinquenta metros à frente, e continuou a não observar qualquer tipo de vida orgânica vinda do seu interior. Receoso, aproximou-se cautelosamente do carro, o que implicou uma mudança radical na sua postura e andamento. Quase que parou, os passos eram dados com o maior cuidado, tentando ser o mais silenciosos possíveis. Ouvia-se de longe que o rádio do carro estava ligado e que tocava alguma género de música rock, à primeira não a reconheceu, mas após um par de passos associou imediatamente a Trans AM. Esta agradável associação agradou-lhe e retirou-lhe um pouco do receio a que estava sujeito naquele momento. Sempre acreditou que as pessoas que têm bom gosto musical não podem ser más pessoas, tal como ele.
Aproximou-se o mais possível do carro, perfez um círculo completa à volta dele e realmente não encontrou ninguém dentro do carro, “será que como eu, anda à deriva rumo ao sul para o bem de outros? Se assim for é a minha perfeita meia face no momento que corre.” Pensou para si em voz alta sem noção disso.
Devagar aproximou a mão da porta para verificar se estava fechada, antes de lá chegar saltou de susto com a abertura automática desta, sem qualquer contacto físico que o provocasse. Parecia que o carro o convidava a entrar e percorrer o resto do caminho na companhia de ambos. Ainda hesitou por uns breves segundos, que lhe pareceram uma eternidade, mas lá cedeu à atracção exercida por aquele momento mágico. Não pensou no que ia acontecer e apenas entrou, fechou a porta atrás de si, posou as mãos no volante, não era necessário ligar o motor porque já estava a funcionar, meteu a primeira e arrancou em direcção ao sul, pelo menos é o que lhe tinham dito. E para sul foi na companhia daquele solitário carro onde a música fazia de companhia.

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