“Próxima paragem Alameda” anunciava o altifalante mais próximo de si. Ignoro-o de tanto o escutar nas muitas viagens de metro que percorria vezes sem conta durante o dia de trabalho. Ir para o trabalho, para ir almoçar com algum conhecido (o que era raro), voltar para casa, ir ao cinema, ir à piscina (isto quase não contava porque não tinha ainda conseguido encontrar uma piscina que não o repugnasse o suficiente para lá voltar) e beber um copo no bairro alto. A volta era sempre de táxi, não considerava que Lisboa fosse uma cidade suficientemente segura para andar a pé, muito menos à noite.
O seu telemóvel sem rede, por estar a mais de dois palmos dentro da superfície terrestre, dizia-lhe que eram nove e meia, não estava atrasado, até estava adiantado vinte minutos. Lançou um calão mentalmente, desfez a sua normal cara de felicidade numa careta de reprovação pelo seu acto inapropriado e disse muito baixinho para si mesmo:
“Raios António, ainda não atinaste com os horários nesta puta de cidade.”
“O que disse? Chamo-me o quê?” alguém mesmo ao seu lado, uma negra bastante alta e acompanhada por uns iguais homens negros altos e com faces muito pouco amistosas.
“Eu disse que Lisboa é uma puta de cidade. Isto porque não consigo atinar com os seus horário, sabe eu venho de um pequena cidade e…” A negra já não lhe ligava, falava com os seus amigos, e pelo olhar inquiridor deles para si demonstravam que ela lhes estava a relatar o sucessivo, seguramente com múltiplas deturpações na depuração da realidade e nenhuma delas a seu favor.
Tentou afastar-se silenciosamente para uma porta mais afastada do metro mas antes que pudesse estar a uma distância segura do grupo de negros onde se encontrava a tal mulher, ao qual pensavam eles – injustamente – que ele a tinha insultado, um dos seus capangas chegou ao pé dele, agarrou-lhe o braço e disse:
“Se éu ti apánhó lá fora ti espanco, percibeste ó branco?”
Abanou a cabeça como um cão que acabou de ser espancado pelo dono e afastou-se o mais delicadamente com a preocupação de não causar a sua ira,
“Desculpe mas foi um mal entendido. Eu sou apenas um rapaz do campo que veio aqui parar por azar. Eu até gosto dos pretos.”
“Preto? Preto é a puta dá tua mãe! Lá fórá ti encho de pórrádá.”
Não havia nada a fazer, afastou-se e pensou rapidamente numa maneira de se safar desta. Enquanto pensava, alguém lhe agarrou no braço e pensou imediatamente que fosse o tal preto a tentar dar-lhe um murro mas para surpresa sua era uma ex-colega dele de psicologia, dos tempos da universidade de Coimbra.
“Oi!”
“Não estava nada à espera de te ver aqui e neste preciso momento.”
“A sério? Isso é bom? Que fazes tu por aqui? Trabalhas?”
Estranhou a intimidade, nunca tinha falado mais do que uns minutos com a tal rapariga. Era uma mera conhecida com a qual nunca tinha tido o interesse de falar e sempre achou que fosse mútuo esse sentimento. Isso, associado ao eventual espancamento a que estava votado, estava a ser emoção a mais para um espaço de tempo tão curto. Respirou fundo e tentou dizer alguma coisa esperta mas apenas o silêncio conseguia exprimir.
“Ouve lá, tas a ter problemas com aqueles gajos ali? Não te preocupes, eles são boa onda, estão é sempre a engrupir o pessoal no metro a dizer que lhes vão espancar. Eu conheço-os bem.”
“A sério! Isso é um grande alívio para mim, pois eu não fiz nada, sou apenas um mero campónio que detesta esta merda de cidade”.
A sensação de alívio que as palavras delas lhe tinham causado, manifestavam-se por um semblante alegre e uma grande vontade falar.
“Não estás a gostar? a sério? Mas o que fazes por cá?” perguntou ela com um sorriso na face e um olhar de quem escutava todas as palavras que fosse proferir.
“Nem por isso. Trabalho numa consultadoria, ando de fato e gravata, está calor e não o posso despir à mesma. Olha aqui para o meu pescoço, está assado não é? Pois é. Depois não conheço ninguém, ninguém se conhece, somos todos anónimos nesta cidade. Acaba o trabalho e vamos todos para a casinha e ninguém convida ninguém para dar dois dedos de palavra. Ninguém quer gastar tempo precioso em conversas que não servem para nada. Eu cá vim de uma cidade pequena. Eu na verdade sou um rapaz da aldeia, gosto de conversar com toda a gente, conhece-las a todas pelo nome e de estar rodeado por pessoas que se não falo frequentemente ao menos sei quem é e os cumprimento. Isto de Lisboa não está comigo. Não sei. Acho que não fico por cá muito mais tempo. E Coimbra, tens ido a Coimbra?” Notou que tinha falado em demasia, mais do que pretendia. Quem era aquela rapariga para lhe contar os seus segredos, quando dizia a toda a gente que estava a adorar estar em Lisboa? Sempre é verdade que é mais fácil contar um segredo a um quase estranho que a alguém que nos conheça há anos.
“Coimbra? Já lá não vou há algum tempo mas…”
Ela continuou a falar mas desta vez foi ele que não escutou. Aquela conversa despertou nele uma grande vontade de sair dali, ter a coragem de voltar a trás, fazer as malas e voltar para a casa dos pais, de onde nunca devia ter saído.
“Próxima paragem Bairro Alto”
“É mesmo aqui que tenho de sair”
“Eu também, eu acompanho-te”
“Desculpa mas estou com pressa e tenho que ir a correr. Desculpa fica para a próxima. Pode ser que ainda nos encontremos no meio do bairro e possamos continuar a conversa. Foi um prazer. Adeus”
“Adeus.”
Não foi muito simpático no modo de despedida mas já não suportava fingir que escutava. Começou a correr, a correr para fora daqueles túneis malditos, túneis esses que sempre o deixavam um pouco mais deprimido. Necessitava urgentemente de ar fresco, ver o céu e conseguir visualizar algumas estrelas nele…
sexta-feira, junho 04, 2004
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