Sempre que olhava para trás envergonhava-se e o estímulo que o tinha arrebatado a pegar numa caneta e uma folha em branco, eram interrompidos a meio da sua acção. Como poderia continuar a preencher páginas em branco com um vazio maior? O seu silêncio devia-se a isso.
Tinha decidido dedicar a sua vida à escrita numa fase tardia desta. Tinha acabado o curso de medicina e exercia esta profissão com competência. A escrita tinha sido sempre um passatempo levado um pouco mais a sério. Pelo caminho participou em sessões de poesia – considerava-se um mau fazedor de poemas – para abrir horizontes literários e conhecimentos, frequentou aulas de escrita criativa e participava constantemente em concursos de escrita para romances.
A persistência deu frutos e aos trinta e cinco anos de idade foi galardoado com um prémio e uma bolsa, um incentivo, para o seu seguinte livro.
Farto de aturar doentes, colegas de serviço quezilentos e sem interesse em curar os seus pacientes, viu nesta oportunidade o seu escape possível da prisão em que tinha tornado a sua vida. Não hesitou e desistiu da profissão, rescindiu o contracto que o ligava ao hospital e partiu para a vida de sonho com a qual nunca tinha realmente idealizado.
Muitas pessoas tentaram-no demover dessa atitude intempestiva e irracional mas ele por casmurrice, orgulho e honra foi intransigente na sua decisão. Aos poucos as pessoas foram-se acostumando com a ideia, o dinheiro da bolsa e o dinheiro que tinha amealhado ao longo dos anos permitiam-lhe continuar a ter a vida que tinha antes e nada nela se alterou, talvez a única excepção era o tempo. Esse, passou a ter em demasia e sem o saber ocupar.
Viveu um período prolífero de escrita, assim acreditava ele, tudo o que escrevia nessa altura considerava-a como a sua última grande obra de arte e cada vez acreditava mais no seu potencial artístico, anteriormente ofuscado pelo tédio de uma vida banal.
Os seus amigos e familiares pediam constantemente os seus escritos para darem a sua opinião mas isso foi sol de pouca dura porque rapidamente se entediaram com as constantes banalidades que proferia como valores supremos da arte de narrar histórias. O fulgor que irradiava das suas primeiras obras – ainda do tempo em que era obrigado a trabalhar como médico –, repletas de ironia e sarcasmo sobre a bestialidade humana presente em todas as suas classes humanas e as bizarras histórias num mundo aparentemente banal, foram-se transformando em romances fúteis sobre a liberdade mundana de nada se desejar fazer. Ele próprio transformou a sua pessoa numa dessas personagens tão bem caracterizadas nos seus primeiros romances, sem o aperceber.
Nos últimos tempos tinha acordado com os olhos bem abertos para o mundo em que tinha andado a viver há já dez anos. Não lhe reconhecia valor moral, pessoal e muito menos como inspiração para o que quer que pudesse vir a escrever. Os seus escritos eram o exemplo disso, a nulidade da sua vida, das suas opções e o vazio com que preenchia páginas e páginas. Tinha a plena noção que a sua escrita conseguia transformar as já de si brancas páginas, em páginas mais brancas do que inicialmente eram.
As pessoas continuavam a perguntar-lhe, suponha por simpatia, pelos seus últimos escritos, aos quais respondia por cobardia “estão em fase de finalização. Qualquer dia estará aí nas livrarias à venda.”. Não acreditava no que dizia mas não conseguia admitir, pelo menos aos outros, que tinha errado na sua escolha de vida. A única solução era continuar a fingir, tal como quase todas as pessoas, que a vida corria como ele a queria que corresse, sem grandes percalços. O que não faltava nesta vida eram profissionais maus que mesmo assim conseguiam trabalhar e ganhar o seu dinheiro e fazer o mínimo para sobreviver no meio dos outros.
Tentou uma vez mais aproximar a ponta da caneta ao papel mas uma força sobrenatural parecia repeli-la, impedindo-a de atingir o seu objecto, isto é, de escrever mais uma vazias palavras. “Vazio por vazio mais vale a folha permanecer em branco!”.
Juntou um maço de folhas brancas, enfio-as num dossier, escreveu na sua lombada “As minhas vazias palavras, que tanto se esforçam por serem brancas”, depois meteu tudo num dos muitos envelopes que possuía em casa e escreveu a morada do seu editor nele. Posou o embrulho em cima da secretária e disse para si mesmo “Amanhã de manhã envio-lhe isto. Sem falta.”. Apagou as luzes e dirigiu-se para o quarto. Deitou-se e adormeceu imediatamente apesar de ainda serem seis da tarde.
segunda-feira, junho 07, 2004
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