
Encontrava-se encostada a um balcão, as pernas estavam cruzadas e apenas um dos pés assentava no chão. O outro pé tamborilava de um lado para o outro, parecia nervoso, tal como o seu maxilar que fustigava uma já insonsa pastilha elástica que mais parecia um pedaço de borracha. As suas sapatilhas brancas já não conseguiam esconder um uso mais que abusado do tempo. Apresentavam marcas declaradas de um desgaste provocado por uma afinidade a roçar a obsessão. Nitidamente eram os seus ténis favoritos e por isso recusava-se a separar-se deles e pôr no lugar onde há já algum tempo deviam estar, no lixo.
Tinha os cabelos presos num rabo de cavalo que não disfarçava um ligeiro encaracolamento, os olhos eram um pouco afilados, tal como o dos chinocas, os lábios eram pequenos mas salientes pelo seu rubor que mostrava por entre os traços da face, os seus olhos eram verdes e contradiziam a pele quase mulata, uma nítida afirmação da sua ascendência negra. Era esse contraste que lhe proporcionava uma imagem exótica e tanto atraía os fregueses masculinos que frequentavam assiduamente o café onde trabalhava.
A um canto encontrava-se um rapaz que observava. O lugar era certamente o mais recatado do bar, longe da entrada e das mesas mais movimentadas. Quase que não se dava por ele, até ela demorou algum tempo a se aperceber que estava ali alguém.
Dirigiu-se a ele, pedindo desculpas pela sua falha, a que ele anuiu com palavras imperscrutáveis, ela fingiu compreender as palavras que supôs serem de consentimento, e prontificou-se a recompensar o desleixo através de um contacto informal feito na segunda pessoa: “que desejas?”. Ele ficou um pouco confuso com a informalidade e respondeu atrapalhadamente alguma coisa, que só mais tarde percebeu não ser bem aquilo que tinha em mente. “De certeza que não queres mais nada? O cheesecake é muito bom?”, aquele à vontade com um estranho e o uso da segunda pessoa do singular constrangia-o um pouco pois não conseguia fazer o mesmo. Respondeu-lhe negativamente, na segunda pessoa do plural, e rapidamente encerrou-se no livro que tanto estava a gostar de ler. Pensou um bocado sobre a rapariga mas depressa a esqueceu e apenas se lembrou dela quando ela voltou com o pedido, o errado devido a o ter induzido em erro através de uma abordagem que não esperava de uma empregada.
Olhava agora para o rapaz intrigada com a sua calma, silêncio e atenção que fornecia a um punhado de folhas repletas de palavras. Como poderia alguém dedicar tanto tempo a algo tão enfadonho, pensava ela. Ele nem sequer deve apreciar a vida por ela não ser igual ao dos livros, que tanto lê, e esquece-se por completo do mundo à sua volta. Tinha esses pensamentos a percorrer a sua mente mas no fundo invejava o tempo disponível que aquele rapaz tinha para se dedicar à leitura, também ela tinha gosto em fazê-lo mas a necessidade de arranjar algum dinheiro para puder ter algumas férias decentes que não fossem o ficar no desterro que era o Barreiro no Verão, obrigavam-na a empregar-se em bares. É temporário, dizia ela sempre para si mesmo.
“Mas que raio estará ele a ler? Gostava de lhe perguntar. Talvez o faça quando ele se tiver a ir embora.” Continuava ela a discorrer na sua cabeça.
Num impulso saiu da sua pose, aonde o balcão estava encostado e por momentos pareceu que ia desabar no chão, numa tentativa de tentar captar a atenção do tal rapaz e após um breve olhar dado por ele, cruzado com o seu, dirigiu-se a ele e perguntou:
- Queres mais alguma coisa? – respondeu-lhe que não, ela sabia-o bem e aproveitou apenas aquela aproximação provocada para ter uma oportunidade de lhe perguntar,
- Que lês? - perguntou ela de rajada enquanto já se acomodava numa cadeira mesmo em frente do rapaz.
Surpreso com a pergunta e já a desconfiar da aproximação inesperada para perguntar se queria mais alguma coisa, respondeu:
- Porque pergunta?
- Tava apenas curiosa. Estive ali o tempo tudo a perceber que livro poderia cativar tanto o interesse de alguém.
- Gosta de ler?
- Sim mas tenho pouco tempo… – fez uma pausa, baixou os olhos e ainda disse muito baixinho, como um sussurro – infelizmente!
- Ler faz bem mas não nos devemos perder neles porque não são uma boa tradução da realidade, apenas uma aproximação. Ficar sentado à frente de uma praça muito movimentada também pode ser muito instrutivo.
- Não me chegaste a dizer que livro é esse! Qual é o autor.
- Interessa realmente? Duvido que se tenha sentado apenas para saber o nome do autor e do livro! E se assim for, assim que o disser volta para o seu trabalho, deixa de aqui estar a conversar e de me fazer companhia.
- Concordo. Sempre é mais interessante que estar a trabalhar.
- Então prolonguemos este momento até à inevitabilidade da sua quebra, pode ser?
- Por mim tudo bem, estou a gostar.
- Pode ser que no final não lhe diga quem é o autor e em vez disso lhe ofereça o livro para ler. Acho que é sempre mais interessante ler os livros que saber o seu conteúdo através de outros, perdem o seu efeito mágico.
Ambos se riram. A conversa não durou muito mais tempo mas só nessa altura, enquanto ria, reparou que ela calçava umas sapatilhas brancas. Durante o curto espaço de tempo que mediou o início da conversa e o seu término, não parou de olhar repetidas vezes para os seus ténis, nunca tinha visto uns tão bonitos. Essa beleza devia-se ao facto de conseguir transportar as marcas do tempo de uma forma digna de serem mostrados.
Sem comentários:
Enviar um comentário