- Acho que não vai durar muito mais!
Não ligou, como não o fazia para muitas outras coisas que ela dizia ou fazia. Abanava a cabeça, em sinal de concordância, e deitava uma pergunta a fingir-se de interessado com o que ela tinha dito, apenas por delicadeza.
- O que é que não vai durar muito mais?
- Isto! Isto a que chamamos “nós”, o que quer que isso seja ou signifique. Cheira-me que vai ser uma coisa curta e passageira.
Continuou a não ligar. Sabia que ela tinha com alguma frequência crises existenciais que abalavam os seus alicerces, incluindo o seu relacionamento, que a levavam invariavelmente a dizer que tudo estava mal. Nada estava como ela queria. Mas o problema era que nem mesmo ela sabia dizer o que queria, isto se realmente queria alguma coisa mais para além de um pouco mais de atenção.
- O que é que tem a nossa relação? Onde é que está o “tudo mal” que para aí dizes existir? Estamos “nós” assim tão mal?
- Tu não percebes, estás sempre calmo, encontras sempre uma lógica onde ela não existe para explicar este sentimento que tenho a que tu chamas crise existencial. Deves pensar que me dás tudo aquilo que necessito! Estás muito longe disso. Houve em tempos quem me desse isso, mas não tu.
Ouvia mas quase não a escutava. Era como um vento fraquito a tentar abanar uma árvore bem grande e com raízes fortes. Apenas lhe afagava uns pequenos frágeis ramos. Era bom tê-lo de vez em quando, numa quente noite de Verão mas não todo o ano.
- Mas se é assim porque não mo dizes? Eu gostava de saber o que é, para saber se posso oferecer ou não. Eu não sei o que queres! Atenção não é. Quando te dou atenção pareces não querer reparar ou não reparas mesmo. Se calhar o que realmente desejas é um relacionamento doentio, tal como o teu anterior, e que te faça ficar viciada nele ao ponto de já ser uma droga, mais nefasta que benéfica.
- Não percebes nada. Houve já quem me desse o que queria e sabia quando o queria. Algo que creio que tu nunca me poderás oferecer. Não era preciso falar.
- Então porque não voltas para ele? Se sou assim tão inútil no meu papel, porque continuas aqui? Porque não estás lá, se a tua cabeça também lá está?
O raciocínio ou falha dele na conversa dela já o desgastava há algum tempo, o que só criava um cada vez maior distanciamento, que via crescer cada dia que passava e que não encontrava maneira de o conseguir parar. Ela parecia fazer questão de o alimentar. Cada vez mais via-a como um objecto frio que possuía nas mãos e que lhe congelava os dedos. Ele fazia-lhe ver que estava a destruir uma relação por não deixar o calor impregnar os poros e fazer o seu papel em quebrar o gelo necessário para criar espaços onde as raízes pudessem crescer e fixar-se.
- E achas que já não pensei nisso? É isso que queres?
- A pergunta está mal formulada. Devia ser: é isso que tu queres? Voltar para ele? Tu e não eu. Eu nada tenho haver com isso, excepto o de ter aparecido de para quedas no meio de algo, que quis, mas que na realidade era um círculo inacabado e iludi-me como não sendo. E como não o posso fechar, por não ser da minha competência, só tu podes decidir, porque não creio que esteja encerrado como o dizes e tentas-me fazer crer.
Ao dizer estas palavras apercebeu-se, poucos momentos depois, o que o seu acto de fala, como que de um processo inconsciente que tinha dado à costa, lhe queria fazer compreender. A maneira como tinha dito as coisas, completamente alheado da situação, indiferente à resposta ou ao que quer que ela escolhesse para a sua vida, era um sinal que tinha começado a surgir há algum tempo e que era muito diferente ao seu normal comportamento, também muito diplomático e dentro da possibilidade o mais imparcial possível mesmo se o envolvesse sentimentalmente. Falava, o seu corpo estava lá mas mais nada, porque o sentimento emocional se tinha evaporado, não sabia para onde e não parecia nem restar vestígios. Estava ali simplesmente por causa do hábito. Olhou para ela e reparou que ela continuava a falar com ele mas ele nada ouvia. Ela gesticulava cada vez mais ao notar que ele não se interessava com os seus problemas. Olhou pela janela, que estava fechada por causa do frio, e reparou pela primeira vez, desde há já muitos dias, de como o seu estava azul como nunca estava no Verão e que já não se lembrava da ultima vez que tinha sentido a relva por debaixo dos seus pés desnudados. Pegou na mochila e abriu-a. Deu rapidamente com aquilo que procurava, bolas de malabares tricolores, quatro ao todo. Fecho-a prontamente, depois de verificar que tinha ali todos os seus pertences, levantou-se e saiu pela porta de casa.
Olhando para trás não se lembra se alguma vez chegou a despedir-se enquanto caminhava para a porta ou se virou por algum instante a face na direcção do dela. Nada disso lhe importou na altura, tal como agora. O facto que lhe intrigava o espírito não era o de ter esquecido o nome dela ou a sua morada ou se alguma vez houve algum sentimento forte por ela que podia recordar mas o processo que o levou inconscientemente a apagar a sua memória, sem nunca ter partido de um acto voluntário, e que na realidade, agora que conseguia analisar a sua vida com algum distanciamento, tinha sido dado início ainda durante o relacionamento com essa pessoa, muito antes do seu acto final, tal como uma larva do bicho da seda que primeiro faz o seu casulo isolador lentamente, isola-se do mundo e depois nasce rejuvenescido e completamente diferente ao seu posterior corpo, quando eclode, e nunca mais olha para trás.
Tudo isto resultava numa cena engraçada com os seus amigos que se riam muito na sua presença quando ele se referia a ela como “aquela rapariga, que agora não me lembro o nome e que o seu nome seguramente começa por uma qualquer letra do abecedário mas que agora já não me lembro…” e eles não acreditavam que isso fosse verdade.
“Tu nunca gostaste é dela verdadeiramente!”
“Achas?” respondeu ele a pensar se era verdade!
quinta-feira, novembro 25, 2004
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3 comentários:
Pois.
;*)
O pois foi em relação em que parte em concreto? :)
e o sorriso em que passagem? :)
"Pois." Fiz-me co-autora, Onun! ;P
;*) é um sorriso kiss on cheek.
;*)
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