- Num livro? Isso não me interessa nada. – Gritou o Chefe sem reparar na arrogância que transportavam as suas palavras. Não o pretendia.
- Não lhe interessar é o mesmo que dizer que para si isso não existe. Já tinha notado essa analogia na sua lógica. – Disse-o sem alterar a sua posição ou olhar para o seu interlocutor.
- O que queres dizer com isso? Qual é mau ou faço mal em dizer o que penso de uma forma sincera? – Interrogou-o com um ar ainda um pouco desconcertado pela afirmação proferido pelo seu assistente.
- Nenhum. Exactamente por isso é que é fácil de saber. Não era com má intenção que o disse mas por assim o ser ou aparentar ser. – Continuou o assistente a falar calmamente sem retirar os olhos do livro que tinha pousado sobre as suas mãos. Levantou, pouco depois, ligeiramente os olhos, levou a mão direita à boca, molhou a ponta dos dedos e com isso permitiu-se a conseguir mudar de página. Já tinha terminado de ler aquela página. Olhou para o seu Chefe, que nesse momento também o olhava de volta com a boca ligeiramente entreaberta, talvez para respirar e pensar melhor, uma posição habitual que adoptava nestes casos.
- É por isso que trabalho contigo há já alguns anos. Podemos não pensar as mesmas coisas, ter os mesmos objectivos de vida ou as mesmas ideologias, mas sabemos dialogar quando a isso somos obrigados para que cheguemos a um acordo. – Rematou o Chefe com a finalidade de dar como terminada aquela conversa. Jorge, o seu assistente, já sabia disso, tinha aprendido com o tempo e vivência como funcionava a cabeça do seu Chefe, quando devia interromper ou calar-se, quando deveria prosseguir uma conversa ou não. Não era pessoa que gostasse de discutir os assuntos até ao mais ínfimo pormenor, dias seguidos, semanas ou meses. Felizmente conseguia contentar-se com diálogos pequenos, curtos e objectivos mas dentro de si funcionava de uma forma oposta. Aprofundava os assuntos sozinho em casa, retinha observações feitas pelos outros e guardava para si as conclusões ou avanços que daí tinham resultado. Tudo isso era-lhe permitido no seu contacto com o seu Chefe, também ele não dialogava muito, pensava muito mas para dentro de si. Era um homem culto mas muito reservado.
Ele, o chefe, pouco reteve da conversa com o seu assistente. O que mais lhe tinha prendido a atenção tinha sido o título do livro que lia, “D. Quixote”. Isso transportava-o para o meio de cavaleiros loucos que esbarravam contra moinhos de vento, pensando serem os seus inimigos de carne e osso. Que tonto, esse tal de D. Quixote, pensar que pode derrubar o mundo por sua e única vontade. Tal como aqueles miúdos que tentam ir contra o sistema apenas munidos de pedras nas mãos e nos bolsos, repletos, como armas. Ficam felizes com o simples acto de partir vidros de carros e prédios como se derrubassem realmente alguma coisa, talvez um descuidado ou aluado que não repare que pedras arremessam. Se os actos morais fossem superiores actos físicos, aí sim. Que tontos que eles são. Todos têm um cerne de loucura dentro de si e nem sequer o sabem.
- Viver, só se for pela arte do estético, da beleza que absorve por completo a atenção e nos eleva um pouco deste mundo mortal para um mais divino. Para o meio da companhia dos Deuses, um limbo divinal. - Disse ele por entre movimentos dos lábios inconscientes.
- O que disse Chefe? Não percebi! – Perguntou o assistente confuso com aquela frase vindo do silêncio.
- Nada! Nada! – Respondeu rapidamente, na tentativa de disfarçar o embaraço que a fuga daquelas palavras lhe tinham causado. Se ao menos tivesse sido um deslize em beleza, mas não, tinha sido um deslize em falso, daqueles que revela um pouco dos nossos pensamentos invioláveis.
- Na verdade somos todos uns tontos de uns idealistas. Não concorda Chefe? – Perguntou o assistente que permanecia na mesmíssima e irritante posição sem retirar os olhos do livro.
-… - O Chefe não soube o que lhe responder. Ficou na dúvida se tinha deixado escapar mais palavras do que realmente pensava ou se pensava em voz alta ou se o seu assistente possuía capacidades de telepatia. Abandonou de imediato a sala com medo que o outro captasse mais dos seus pensamentos ou que ocorressem mais deslizes sem beleza alguma.
domingo, outubro 09, 2005
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1 comentário:
Obrigado... não sei que dizer...
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