quarta-feira, janeiro 03, 2007

Sonhar Acordado

Passava por uma rua empedrada da velha cidade enquanto mastigava carradas de pastilhas. Não sabia porque realmente o fazia, nem como tinha conseguido enfiar tantas pastilhas na boca, mas esse era o caso. Tinha posto os phones do seu MP3 de uma marca branca, de igual cor, talvez a tentar imitar uma marca conhecida - quem é que iria saber isso?. Também não era seu costume fazê-lo – caminhar com os phones nos ouvidos -, normalmente incomodava-o não conseguir ouvir os seus próprios passos, as vozes dos outros, o chilrar dos pássaros, o ladrar de cães hostis, as buzinas dos carros, tantos outros ruídos que preenchiam as ruas de uma cidade, para além de interferirem no seu próprio. Este último é que era a real razão porque nunca usava phones quando caminhava pela sua cidade ou qualquer outra. Ao não sentir isso parecia-lhe que o mundo que via através dos seus olhos era um outro, semelhante a um filme, cheio de cores, que variavam de intensidade de acordo com o humor que a música debitava directamente para o seu cerebro. Enquanto gozava essas alterações que os phones lhe proporcionavam, reparou numa pessoa que corria atrás de um garoto. Essa pessoa encontrava-se vestido com um fato macaco de ganga azul, por cima de uma camisola de flanela de cor verde. Só depois de o ver passar junto a si, em alta correria, e virar na esquina é que reparou ser M., um amigo de longa data que pensava estar bem longe dali, numa terra estrangeira a trabalhar. Ficou perplexo e quase inconscientemente desatou a correr no seu encalço. M. não reparou que alguém corria atrás de si, estava demasiado absorvido na sua perseguição. Virou logo a seguir numa outra esquina, das muitas que ornamentavam a zona velha da cidade e parou. Tinha perdido o rasto ao miúdo. “Mas como é que ele desapareceu?” pensou no seu intimo M.. Atrás de si vinha O. Scar, ainda a pensar que estava a viver um sonho pois permanecia com os phones nos ouvidos. O. Scar parou assim que viu M. parado. Já não se via nenhum fedelho, apenas M. sozinho no meio da estreita rua, aparentemente desorientado por ter perdido a sua presa. Tentou conter-se mas como a cena parecia-lhe tão fora do normal engasgou-se em risos que lhe subiam garganta acima. No entretanto engasgou-se mesmo e teve que cuspir a grande bola de pastilha elástica que se tinha formado dentro da sua boca para conseguir respirar. Ficou um bocado atónito com o tamanho dela mas rapidamente a esqueceu e continuou as gargalhas que tantas cócegas lhe faziam na garganta. M., entretanto, tinha-se voltado para trás e tinha presenciado toda aquela cena. Não reconhecia O. Scar e por isso pouco se interessou por aquela patética personagem. O. Scar reparou nisso e disse no meio do seu sufoco “M. então? Não devias estar num outro sítio? É estranho encontrar-te na minha cidade e ainda por cima sem me teres dito que aparecias por cá! Isso é uma autentica falta de educação da tua parte.”. O. Scar não teve a percepção que a voz que saía da sua boca estava muitos decibéis acima do normal e para além disso estava distorcida pelo refluxo salivar que teimava em sair das suas glândulas. M. ficou intimidado por essa estranha voz mas teve o condão de chamar a sua atenção. Olhou para a então patética figura e encontrou o seu velho amigo O. Scar. “O. Scar! Estás com um terrível aspecto e apresentação. Serão essas as melhores maneiras de te dirigires a um tão nobre e antigo amigo?”. O. Scar nada compreendeu do que M. lhe tinha dito pois continuava com os phones nos seus ouvidos e tentou imaginar como teria saído a sua voz devido à distorção que a música lhe provocava na zona áudio-verbal do cérebro. Não pensou durante muito tempo no assunto e removeu o dito aparelho do seu corpo e dirigiu-se a M. “Então velho amigo, por cá?”
“É verdade, e nada te disse, eu sei. Não disse nada de propósito pois vim cá parar sem saber. Ou melhor, vim cá de perfeito juízo, apenas não sabia que tinha que vir tão apressado o que não me deu hipóteses de te avisar. Para além disso, vim cá apenas falar com uma pessoa e depois tenho imediatamente que bazar. Tenho muito coisa a acontecer na minha vida” M. disse todas estas palavras de rajada, sem dar qualquer espaço para perguntas ou interrupções. Enquanto falava com ele, olhava para os lados, ainda procurava o tal fedelho e começou a andar no sentido contrário do qual tinha vindo.
“Mas quem procuras tu? Se calhar posso ajudar-te. Sabes, esta é a minha cidade e…” M. prontamente interrompeu a frase de O. Scar e respondeu-lhe:
“Desculpa O. Scar por nada te ter dito mas eu sei que não conheces esta personagem, porque ele não é uma pessoa como eu e tu. Se o conhecesses já me tinhas falado dele seguramente. Ele é misterioso e cativante ao mesmo tempo, nunca pára no mesmo sítio duas vezes, pelo menos é o que dizem por aí…”
“..mas quem é que diz isso?” perguntou O.Scar que começava a reparar na fácies transtornada do seu amigo. A sua pele estava baça, com algum suor, daquele que não é preciso tocar para saber que estará pegajoso e frio, os olhos estavam rodeados por uma grande sombra que parecia engolir o brilho que lá antes reconhecia ver no seu amigo, o cabelo estava desalinhado, o que ela habitual mas muito mal tratado, repleto de lixo, pelo menos parecia-lhe ser lixo.
“Para onde estás tu a olhar? Eu sei que estou com mal aspecto, descansa que é por uma boa causa, quando te contar tudo vais perceber. Até penso que foi muito bom o acaso nos ter juntado nesta tua muita agradável cidade. Já te tinha dito que gosto muito desta tua cidade? Bem vamos ao que interessa. Não estejas aí parado como um paspalho e segue-me. Cheira-me que é por aqui. Aquele fedelho que me levou o endereço deve ter alguma coisa haver com quem procuro. Ele age sempre de forma muito misteriosa.”
O. Scar estava a estranhar toda aquela situação, desde andar pelas ruas da velha cidade de phones nos ouvidos, pressentir o mundo que o rodeava como um filme, até ao encontro fortuito com o seu amigo M., mas que ao mesmo tempo parecia ser uma outra pessoa e a estranha pessoa mistério de quem o M. de agora tanto falava.
M. viu uma porta à sua direita e entrou sem bater. Entraram directamente para dentro de um consultório escuro, cheio de mofo. Pouco se conseguia vislumbrar mas um pequeno candeeiro iluminava parte de uma pesada secretária. Por detrás dessa secretária estava um velhote um pouco calvo, de cabelos e pêra totalmente branca que usava uns engraçados óculos redondos de massa. Não tirou os olhos da sua tarefa, que era escrever lentamente mas de uma forma firme sobre um papel branco. Sem nos dirigir o olhar disse:
“Eu sabia que eras capaz de me encontrar, estava escrito no meu e no teu destino este encontro. Mas já em relação ao teu amigo O. Scar não sei bem qual vai ser o seu papel no meio disto tudo. Não estava espera dele e isso é raro no meu ramo. Surpresas.” Levantou a cabeça, devagar, tal como os seus movimentos com a sua esquelética mão de velhote simpático e olhou O. Scar nos olhos. “Creio que já nos vimos e até já nos fomos apresentados. Já não sei bem aonde, em que contexto nem sequer em que época. Mas isso agora não interessa. Existem outros assuntos a tratar e é por isso que M. aqui está.”.
O. Scar não estava a gostar do filme em que tinha entrado sem o seu consentimento, o velho afinal não era velho, era um homem gordo dentro de um fato caqui coberto de cartas de um baralho que ele não conseguir decifrar. “Porque está ele cheio de cartas? Porque as tira ele do seu casaco?” pensava O. Scar para si. Enquanto isso o misterioso homem ia tirando cartas, umas a seguir as outras, aparentemente, sem nexo e dizendo coisas a M. numa língua que O. Scar não percebia. M. também tinha mudado de aspecto, estava como sempre o conheceu, já sem o fato macaco, nem o aspecto de um homem à beira da morte ou de um ataque de pânico. Não se sentia bem no meio de tanto mistério e a sua bexiga começou a ressentir disso. Começou a sentir uma urgência de ir à casa de banho.
“Tenho que ir à casa de banho. Desculpem” disse O. Scar. Nenhum dos outros dois pareceu dar atenção. O. Scar dirigiu-se à porta por onde tinha entrado mas em vez de ir ter a uma rua, encontrou um corredor, que não lhe era totalmente estranho e dirigiu-se, como um autómato que já sabe perfeitamente o seu caminho, para a casa de banho que não sabia existir no fim desse corredor. Entrou pela porta do serviço para homens, fechou a porta atrás de si quando se virou reparou que o chão era inclinado em direcção ao ralo e que não havia nenhuma sanita apenas um chuveiro entre quatro paredes forradas a pequenos azulejos brancos e pretos. “Eu conheço estas casa de banhos .. mas como é que eu vim cá parar?”. Estava confuso e não sabia como lidar com isso, apenas pensava “tenho que sair daqui antes que enlouqueça de vez.”. Abriu a porta e ao mesmo tempo penetrou um grande raio de luz natural que obviamente não poderia provir de um corredor. Olhou e reparou ter os pés nus enfiados na relva da piscina olímpica da sua cidade, aquela piscina que já não existia. Desta vez não estranhou, sentiu-se em casa, aquele cheiro intenso a cloro, os gritos, as parvoíces que os rapazes diziam uns aos outros, as gotículas de água que lhe batiam nas pernas e os apitos de treinadores de natação amadores furiosos com o amadorismo dos seus pequenos atletas. “Sim isto é casa.”. Como estava cansado sentou-se na zona da bancada reservada a atletas e ficou a observar o sono a tomar conta dos seus pensamentos. Aos poucos tudo foi ficando escuro, acolhedor e tranquilo ao mesmo tempo. “Já não era sem tempo” ainda pensou O. Scar, talvez já dentro de um outro sonho.

Alguém lhe bateu no ombro, sentiu O. Scar mas estava demasiado lento para raciocinar. Depois lembrou-se que poderia ser o seu treinador a chateá-lo por estar tempo demais debaixo do sol antes do treino. Deu um salto e olhou para trás. Não viu nada para além de uma parede branca. Olhou para o lado e continuava a apenas ver branco, olhou para o outro e também não via nada para além do branco imaculado. À sua frente reparou que havia uma porta pintada de branco, difícil de diferenciar do resto da parede. Dirigiu-se a ela mas parou a meio do caminho. Beliscou-se um par de vez, até fazer sangue. Provou o sangue e soube-lhe a ferro, a sangue verdadeiro. Suspirou durante uns breves minutos, como que a ganhar coragem. Entre cada suspirou notou que escutava uma música de fundo, muito baixinho. Apalpou as orelhas e lá encontrou o dispositivo que produzia tal ruído, os phones do seu MP3 de marca branca e de igual cor, provavelmente a imitar uma outra marca, talvez conhecida. Tudo parecia coincidência para O. Scar, tal como o que tinha experênciado nesse dia, até esse momento, o encontro com o fedelho, depois M., o homem misterioso esquelético que se transfigurou num fato caqui cheio de cartas, a casa de banho xadrez e a piscina da sua infância. Seriam tudo coincidências, pensava O. Scar para si mesmo “ou estarei a sonhar acordado?”. Encontrou o dispositivo e pensou em desliga-lo. Hesitou no último momento e em vez de o desligar aumentou o som e disse “que se lixe. Só se vive um dia e não é todos os dias que vivemos realmente num filme.” Depois dirigiu-se confiante para a porta.

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