terça-feira, dezembro 30, 2003

ex-alcoolico

“Sou um ex-alcoólico. Foi muito importante para mim tê-lo sido.”
Quem dizia isto era um homem na casa dos trinta, com um fácies de índio por descendência, dos Incas, assim supomos, cabelo preto e fino, a tapar as orelhas – que constantemente atirava para trás, com gestos graciosos, numa mulher -, uma pele escurecida, olhos castanhos escuros, a condizer com o cabelo e uns dentes reluzentes da sua falta de saúde – uma capa de prata envolvia os seus dentes da frente, como que de uma armadura fossem, com um conteúdo já putrefacto no seu interior, de cor escurecida, apenas existentes devido à sustentação fornecida por este invólucro de brilho metalizado.
Cactos era o seu nome, não era castelhano, era a tradução fonética de um nome quechua, do qual não sabia o significado, ninguém o sabia, pois ele dominava essa língua, era a sua materna, em sua casa só se comunicava nessa língua, tinha muito orgulho de ser um descendente da cultura Inca. Possuía uma loja de artesanato, era um ex-alcoólico orgulhosos, vangloriava-se por se sentir um exemplo vivo para os seus pobres compatriotas, de como se pode fugir ao mais provável, isto é, ser-se alcoólico e sem trabalho.
No primeiro dia que o conheci disse-me que trabalhava com cento e cinquenta artesãos, todos da zona da cordilheira de onde nasceu, San António e mais alguns “pueblos” ao redor de Puno, uma cidade que é banhada pelas águas do grande lago Titicaca.
A sua função principal, na sua perspectiva, era incentivar estas pobres pessoas a usarem o que demais tradicional tinham, que era o artesanato, que por sua vez preservava o pouco da cultura Inca que ainda persistia em não perecer, sem terem noção de que isso faziam. Mais tarde conseguiria que tivessem orgulho em ainda poderem-se considerar Incas.
Felizmente, para si e para os seus artesãos, que os turistas apreciavam muito os seus produtos, sendo um negócio lucrativo para todos e todos estavam agradados com a união.
Nesse mesmo dia, com o seu paleio, conseguiu-me vender uma camisola de lã de bebé alpaca, feita por “Isabel Pochita”, dizia ele. Ainda fez um pequeno desconto, mas mais tarde comparei com artesanato semelhante e deparei-me com preços mais baratos. Acho que a conversa encantou-me e por isso atribuí e continuo a atribuir, mais valor do que tinha. Não é uma camisola qualquer, é uma camisola com uma história por trás, feita pela “Isabel Pochita”, que lhe atribui uma valor incalculável.
Uma vez perguntei-lhe se tinha filhos, ele sorriu, riu-se e disse:
“Eu nunca me casarei. Serei sempre livre.”
Estranhei, num país conservador como o era o Peru, ele ter dito isto, mas nunca se sabe, ao princípio, o quanto de verdade nos contam. Podia ser tudo mentiras.
Não insisti mais com ele, até porque ele começou a falar, mais uma vez, do seu trabalho, no orgulho que tinha de ter sido um alcoólico e na grande obra que estava a fazer com os seus camponeses. A cultura Inca haveria de reaparecer, acreditava ele.
Muitas foram as ocasiões em que tive a oportunidade de trocar dois dedos de conversa com ele, tanto na sua loja, por onde passava todos os dia, como das muitas vezes que o encontrava nas ruas de Puno a vaguear. Certo dia, sem aparente razão, disse-me que tinha conhecido um português em tempos. O início da conversa foi tímida, apenas referiu que tinha sido em Yacucho, num congresso sobre folclore onde umas artesãs suas conhecidas tinham ido, vestidas a rigor pelos costumes Incas, fazendo inveja aos outros descendentes Incas vindos um por pouco de todo o lado – Chile, Argentina, Bolívia, Equador e Brasil. Dizia que o achou logo muito simpático e muito comunicativo. A reunião durou três dias e nesse curto espaço de tempo o relacionamento entre eles foi sempre crescendo, chegando ao ponto do português lhe dizer no ultimo dia o seguinte:
“Vou contigo para Puno, quero conhecer onde vives e como se vive no Peru e mais precisamente na tua cidade. Pago-te tudo, a viagem e tudo o resto, serás o meu guia.”. Não lhe conseguiu dizer não, o que lhe veio a proporcionar momentos que nunca pensaria que seriam como foram. “Portugues mucho loco. Diós mió, mucho mucho loco!”
O português, no final de contas, tinha-se apaixonado por ele, mas era um homem com demasiada pedalada para ele. Eu perguntava-lhe o que queria dizer com louco, mas ele apenas sorria e nada dizia. Os gestos que fazia, ao falar sobre o seu português, as risadas que mandava para o ar, o brilho emanado pelos seus escuros olhos e as palavras que não existiam para descrever o que se passou davam apenas uma expressão do que se poderia ter passado. Muito devem ter falado sobre a cultura Inca, que ele era orgulhoso de pertencer.
Mesmo depois de se terem separado, continuaram a contactarem-se, durante algum tempo, inicialmente por cartas e alguns telefonemas. Mas já há alguns anos que nada sabia dele, nem uma palavra trocavam. Sentia a falta dele:
“Tenho que lhe escrever uma carta…mas não sei o que lhe devo dizer, nem por onde começar… apenas como quero acabar a carta.”, e esta frase, que o ouvi dizer uma par de vezes depois desta conversa, confirmava isso.
“Se a escrever, entrega-lhes a carta em mão? Poderias-me fazer esse favor?” perguntou-me ele no meu ultimo dia.

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