Tinha escolhido a ilha de Amantani por diversas razões.
Uma era porque tinham mantido as suas tradições, falavam ainda quechua, como sua língua mãe – alguns até tinham dificuldade em falar em castelhano – e por ser uma ilhota situada no meio do lago Titicaca, a três mil e oitocentos metros de altitude, isolados tanto do Peru como da Bolívia. A ilha era um estado dentro de outro estado, pelo menos era assim que se sentiam os seus habitantes.
Isto eram as condições perfeitas para realizar um estudo semelhante ao dos primeiros antropólogos, quando se estudava os “povos primitivos”. Este seu interesse pelos primórdios da disciplina que tinha decidido estudar na universidade, onde os nomes como Malinowski, Evans-Pritchard, Margaret Mead, Durkheim, Lévi-Strauss e muitos mais figuravam nessa sua lista imaginária, tinham aparecido cedo na sua carreira académica. Tinha entrado no curso por mero acaso, nem primeira escolha tinha sido e completamente ignorante do que realmente se tratava. Ao deparar-se com as obras desses grandes Antropólogos, a sua vida mudou e encontrou o seu significado, da sua vida: ser antropólogo. A ideia de viver no meio de comunidades pouco tocadas pelo “mundo moderno”, desconhecidos pela maioria das pessoas, eram-lhe um atractivo demasiado forte para poder fazer uma escolha racional sobre que rumo deveria seguir a sua carreira como antropólogo.
Ainda pensou no Brasil e nos seus índios perdidos no meio do matagal denominado Amazónia, mas isso já era uma moda, todas para lá queriam passar umas férias, o que ia contra os seus ideais. Tinha que prosseguir as grandiosas obras que os “antigos” tinham começado e era sua função tentar acabá-las.
Encontrava-se na ilha há dois anos, de uma forma quase interrupta, as excepções, breves, foram devidas a imperativos académicos, que o obrigavam a deslocar-se a Lima ou a Portugal para contactar com o seu coordenador de tese.
Devido a isso, ao grande esforço que realizou para se tentar integrar nesta comunidade, a sua compreensão e fala do quechua estava bastante evoluída, a sua família de recepção já o considerava parte dela, fazia os mesmos trabalhos que os outros homens da casa e só lhe faltava expandi-la, através da sua união a uma rapariga de uma família com o mesmo estatuto que a sua família de recepção. Não sabia se deveria dar este ultimo passo, até que ponto isso não lhe afectaria o trabalho antropológico e se era moral e eticamente aceitável num trabalho de campo. Nunca revelou estes pensamentos ao seu coordenador, de certo que ele não iria compreender, a não ser que fosse o próprio Malinowski ou Levi-Strauss, mas como isso não era o caso. Era apenas um patético pseudo-professor de antropologia, assim lhe chamava ele, da sua universidade.
A família que o recebeu era constituída por cinco pessoas. Olga, casada com Joaquim há dois anos. Já tinham três filhos, um de oito, Vidal, outro de cinco, Eloy e o mais novo com apenas dois meses que era a Udid. Nunca chegou a saber se os filhos eram do mesmo pai. Tanto Olga como Joaquim, mais este, eram reservados e não falavam muito, só em algumas situações especiais em que tinham a necessidade de contar o que se passava, o que sempre envolvia algum acontecimento do passado.
Um desses dias aconteceu quando a mãe de Olga lá tinha ficado para o jantar. Quando chegou a casa, já ela se encontrava a falar com a filha e a chorar. Não perguntou nada, fingiu que não tinha visto nada e saiu da cozinha. Mais tarde, há hora do jantar, Olga contar-lhe-ia, também quase a chorar, a razão da sua mãe ter estado a chorar. Pelos vistos o seu pai sofria do estômago há já alguns anos e que se tinha vindo a agravar com o tempo. Naquele dia estava particularmente mal e ninguém sabia a causa disso, nem mesmo o seu médico. Já tinham consultado curandeiros, mas nenhum dos seus tratamentos resolvera a situação. Ambas sentiam que iriam perder este ente querido muito em breve.
Com histórias destas, recebidas ao longos dos seus dois anos de estadia naquela ilha, já sabia grande parte dos segredos da ilha, da sua comunidade e de algumas famílias mais próximas. Quase que poderia dizer que era um “amantani”.
Com dois anos de estudo, estava na hora de partir e escrever o seu trabalho sobre esta gente, com quem tanto simpatizou e onde se sentiu integrado. Se constituísse família, sabia que nunca mais sairia daquela ilha, nunca acabaria a sua tese e teria desperdiçado o dinheiro da bolsa, recebida para esse efeito, o que provavelmente seria reclamado pela instituição que a tinha fornecido.
Sentado em Pachamama a observar o pôr do sol, um hábito que tinha adquirido nos últimos meses, pensava sobre todos estes assuntos à procura de respostas e soluções, das quais ainda não tinha encontrado nenhuma. Por mais pedidos que fizesse, tanto ao seu deus europeu como aos do sol Inca e meditações, nada parecia ter resultados práticos.
Partia nesse dia igual aos dias anteriores, vazio, sem respostas para as suas perguntas. Amanhã voltaria para assistir, mais uma vez, à queda do sol sobre o lago Titicaca à procura de respostas, mas se não as recebesse sempre sabia que não sairia dali totalmente desiludido, pois o seu espírito ficaria mais tranquilo depois, tal como a paisagem que tinha a oportunidade de observar agora.
terça-feira, dezembro 30, 2003
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