segunda-feira, dezembro 29, 2003

Maria Ambroce

Sentada à beira de um precipício, costas voltadas para a garganta funda do vale e as pernas a baloiçar juntamente com o movimento de fiar.
À volta não se vê nenhuma figura humana, apenas uma cadela prenhe, enrolada aos pés da senhora, contente da vida.
Ela era pequenita, não mais de um metro e cinquenta, pele escura, por natureza mas também trabalhada pelo sol das alturas, rugas sulcadas como vales na sua fronte e face, uma réplica, em miniatura, dos socalcos que se viam nos montes em frente, nada que disfarçasse a sua idade, apenas a realçavam.
Seu nome é Maria Ambroche, setenta e um anos, nascida em Chibay, apenas, porque sempre fez a sua vida em Maca.
Parecia isolada naquela estrada de areia e pó, circundando as montanhas como um fino fio que a enfeita, como uma arvore de natal. A figura destacava-se pelo seu contraste.
Por aquela estrada, todos os dias, passavam pequenas carrinhas repletas de turistas, desejosos por ver condores, a mítica ave com uma envergadura capaz de tapar o sol.
Mas não eram os turistas que lhe interessavam, é claro que um sol (dinheiro) dava sempre jeito para as suas fracas poupanças e era bem vindo na sua bolorenta carteira vazia. Ela esperava os seus compatriotas, os que guiavam as carrinhas e os estrangeiros, esperando que eles se lembrassem de ter trazido umas folhas de coca a mais, para que ela pudesse matar as saudades, mascando-as. Há muito que era proibido planta-la, na sua região, o estado tinha medo que eles procurassem dinheiro fácil, mais fácil que o dos turistas..
O seu castelhano não era o mais correcto, a falta de dentes piorava a sua dicção, para além de com os anos mescla-lo com a sua língua nativa, o quechua. Na a sua idade, que não era muita, já não era normal que as pessoas da sua idade, no seu país e mais concretamente na sua região, interessarem-se por aprender coisas novas, mas ela não era assim e por isso transportava sempre consigo um livro de “Como aprender inglês em dez lições”, oferecido por estrangeiro mais atencioso, para que pudesse falar com os turistas e distrair o muito tempo livre que tinha. Tinha adorado e todos os dias tentava aprender algo novo na nova língua, mas infelizmente não sabia ler, o que não lhe fazia confusão nenhuma, pois o livro estava repleto de desenhos. Mostrava orgulhosamente o livro a todos os turistas que via.
Como gostava de conversar e detestava repetir estórias, tinha um certo prazer em inventar novas. Ela contava e os guias traduziam, mas também a escutavam, porque cada dia com ela era um dia diferente.
Neste dia estava particularmente aérea e contou como tinha um marido muito mais novo, com cinquenta anos e isso tinha uma razão de ser. Quando era mais nova, tinha-se fartado de escutar histórias sobre maridos que batiam nas suas mulheres, o que não lhe agradava nada. Com medo que isso também lhe acontecesse, só casou aos trinta e um anos com um rapazito de dez, que por ser tão novo, primeiro foi uma mãe para ele, educando-o como se de um filho fosse e só depois veio a ser verdadeiramente seu marido, mas como isso se misturava com um sentimento de uma mãe que ela lhe tinha sido, tinha mais respeito e nunca lhe fez ou faria mal.
Os turistas e guias estranharam a historia e a diferença de idades. Especularam que ela devia estar demente, ter-se confundido nas idades ou que o marido actual era um segundo ou terceiro marido.
Ela não se importou com isso. Conseguiu as folhas de coca, que já as mastigava deliciada e alguns sóis dados pelos turistas mais entusiasmados, que muito riam, tiravam fotos e perguntavam através dos guias, coisas sobre a sua vida. Depois foram-se embora com um sorriso na boca e acenar adeus, a dizer a única palavra que deviam saber em castelhano “adiós”.
Pouco passava do meio dia, o sol escaldava mais que há uma hora atrás, sentia-o no chapéu e na lã quente que fiava.
O seu burro reapareceu no meio de um socalco, bem lá em baixo, perto do rio Colca, provavelmente a tentar matar a sede. Lembrou-se que também tinha sede e a boca dormente devido às folhas de coca.
Arrumou a lã fiada, chamou pela cadela e rumou pela estrada que lhe iria conduzir ao seu burro e mais tarde a casa, onde o seu marido, vinte e um anos mais novo, a esperava, provavelmente.

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