Urbe era um guia turístico. Ia-os pegar nos seus hotéis luxuosos e depois rumava para o meio do nada, algures nos Andes, dizendo que o paraíso era para lá. Eles confiavam.
Lá, no sítio a que ele se referia como o paraíso, as aves voam nos profundos vales, onde o pôr do sol e o seu nascer são imagens como nunca dantes vistas, pela sua beleza e onde a lã, de qualidades diferentes, aquece todas as almas – mesmo a das mais desconfiadas.
A viagem é realizada numa carrinha com nove lugares, galgando terreno ora asfaltado ora simplesmente por cima da desnudada terra. Algumas vezes, por infortúnio, passava por cima de uma bicuña ou alpaca, mas eram azares só para os pobres animais e seus donos, porque os turistas transbordavam uma excitação alegre com essa “aventura”.
Como poucos eram os turistas que dominavam a sua língua, teve que aprender inglês, por correspondência. No final conseguia transmitir o que queria e satisfazer os desejos dos seus clientes, mas sabia que cometia erros grosseiros na sua fala, mas não tinha dinheiro nem tempo para a aperfeiçoar. As cinco bocas esfomeadas que o esperavam em casa, não lhe davam validade para qualquer tipo de liberdade. Estavam sempre a demandar mais comida e só ele é que a arranjava.
A viagem, já a fazia há cerca de oito anos – apesar dos seus vinte e cinco anos -, era passada em vales e montanhas inóspitas dos andes, a alturas que faziam as cabeças dos turistas estoirar de cansaço e alucinações mirabolantes. Dava-lhe um gozo especial vê-los nesse estado.
Viam lamas, alpacas, bicuñas e outros animais, bebiam mate de coca e mastigavam as suas folhas. Faziam caras estranhas ao saborear o seu suco acre, que ele lhes dizia serem bons para o mal das alturas. Como estava habituado, desde miúdo, era uma tradição milenar do seu país, o sabor já não lhe afectava. Para ele era como se fosse um doce para os turistas. Todos experimentavam, eram umas autênticas ovelhas que o seguiam. Nestes momentos sentia-se um pastor a guiar o seu rebanho.
Mas ele não se comprazia apenas com os males dos outros, sentia também uma deliciosa felicidade ao ver a alegria que conseguia transmitir a estes turistas, pois isso estava ligado às suas volumosas carteiras e às chorudas gorjetas que a isso podiam proporcionar. Tudo o que fazia, mesmo as coisas que iriam amargurar a boca dos turistas, tal como as folhas de coca, eram experimentados, por ele, com um grande sorriso de inocência, pelo menos era assim que eles, os turistas, o interpretavam.
Tudo no caminho estava organizado, os cafés e os restaurantes onde paravam, eram de amigos ou familiares, de onde recebia sempre uma comissão. Só tinha pena de não puder contratar condores para que eles voassem a horas determinadas, isto porque eram incorruptíveis, planando apenas quando lhes apetecia, o que por vezes estragava os planos da viagem e a sua gorjeta.
Tinha vinte e cinco anos, mas já estava cansado desta vida. Queria assentar, ter uma casa e dinheiro certo todo o fim de mês, para depois puder descansar no final do dia sem se preocupar com o dia de amanhã e uma vez por ano passar férias no mar, que nunca tinha visto, juntamente com a sua família. O seu sonho era um dia poder ser um turista nos países de onde eram os turistas que guiava.
Inveja crescia no interior do seu ser, cada vez mais via os turistas como meros objectos a extorquir, onde não havia nenhuma imoralidade em tentar tirar o maior proveito deles, mesmo até roubar.
… a inveja crescia, de não puder ser como eles.
sábado, dezembro 27, 2003
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário