Passeava, mas parecia um zombie. Pele muito branca, grandes goteiras escuras caiam por debaixo dos seus castanhos olhos, que pareciam estar a boiar no meio de um charco de sangue, o vermelho de artérias salientes e engurgitadas. As pernas moviam-se com dificuldade e não sabiam por onde obrigavam o corpo vaguear.
O sono estava em divida, devia um noite bem passada e não uma noite em claro, como a do dia anterior, passada dentro de um autocarro, todo luxuoso, com ar condicionado, televisão e refeição, mas que não parava de seguir por estradas demasiadamente tortuosas. O motorista estava ansioso por chegar, não poupando o acelerador e por consequência, os passageiros que seguiam com ele.
Como é óbvio, não foi difícil não adormecer. A cabeça flutuava de um lado para o outro, sempre a bater em qualquer sitio, na janela ou no vizinho do lado.
Lá fora, uma escuridão demasiado negra, que até as estrelas apagava. As luzes do autocarro iluminavam um pequeno terreno à sua volta, mas era sempre a mesma coisa, areia, pedras e rocha. Não havia casas ou luzes artificiais visíveis.
Ressentia-se agora, apesar da hora matutina, dez e meia da manhã e mesmo depois de já ter saído do autocarro. Continuava a caminhar nessa densa luz negra, a mesma que encontrou na viagem de autocarro, sob um sol abrasante que já torrava a sua tez de lixívia.
Uns pequenos zumbidos chegavam aos seus ouvidos, gente a gritar, cartazes, polícia de choque, todos no mesmo sítio, na plaza de armas.
Alguém lhe puxou a mochila, desapareceu na multidão e nunca mais apareceu.
Ao mesmo tempo a polícia de choque e os grevistas começaram a misturar-se de uma forma brutal. Já ninguém sabia quem era quem. Voava sangue, dentes, gritos de desespero e excitação. Alguns turistas tiravam fotos, contentes por ali estarem, alheios ao sofrimento. Não era o deles, por isso não lhes interessava.
Havia alguns ingénuos que pensavam puder dar termino aquilo com meros gritos: “Calma! Pára!”, mas não servia de nada, as gotas de sangue continuavam a voar, os cacetes zumbiam e uma mancha vermelha depositou-se na sua camisola da “Inca Kola es nuestra”.
Deu meia volta e voltou para o hostal onde tinha uma reserva em seu nome. Podia ser que depois de dormir o mundo se transformasse num sítio melhor de se (vi)ver.
sexta-feira, dezembro 26, 2003
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário