sexta-feira, janeiro 02, 2004

Cola-sapatos

Procurava o seu próximo cliente, sentado em cima da sua caixa de engraxar sapatos. Levantou-se, pegou na sua caixa de madeira, pô-la no ombro direito e com uma escova preta usada na mão esquerda abordou a primeira pessoa que passou:
“Por um sol engraxo-te os sapatos. Não há problema, a graxa que uso é natural e não estraga o sapato. Está mesmo a precisar de uma escovadela. É só cinquenta cêntimos. Vá lá, é para comer!”
Sabia que os que davam maior gorjeta eram os estrangeiros e mesmo que poucos aceitassem a proposta, um por dia valia por todos os peruanos que fizesse num bom dia. Não falava nada de inglês ou outra língua para além de espanhol e um pouco de yamara, o que dificultava um pouco a comunicação, mas lá se fazia perceber.
Normalmente os estrangeiros tinham calçado umas pesadas botas, repletas de lama e pó e sem vergonha de andarem nesse estado. Não percebia isso, como é que estes estrangeiros, mais ricos que eles, mais poderosos que eles e supostamente culturalmente superiores, podiam não ter cuidado nenhum com a sua aparência, o primeiro indício de riqueza! Muitas vezes se perguntava como era isso possível?
Entre os peruanos, os ricos preocupavam-se muito com a sua aparência, sendo os seus maiores fregueses, o que lhe proporcionava uns sóis para pagar as suas refeições e poupar algum dinheiro.
Para além deste trabalho honesto, ele também usava alguns estratagemas para puder sacar uns cobres aos ingénuos turistas que tinham a mania da filantropia. Metia conversa através da pergunta típica: “quer engraxar sapato?”, o que invariavelmente era respondido com um não, mas não desistia, sentava-se na sua frente a mostrar os pontos fracos dos seus sapatos ou simplesmente olhava especado para eles, sem nada dizendo – o que ocorria na maioria das vezes. Este desconforto que ele provocava nos turistas levava a duas coisas opostas: iam-se embora ou começavam a falar com ele. Quando escolhiam este ultimo caminho, perguntavam sempre as mesmas perguntas:
Como se chamava; onde vivia; se gostava de Puno e do Peru; o que havia para visitar na sua cidade; a sua idade e algumas vezes coisas sobre a sua família e amigos, mas nunca saiam disto. Como já estava farto de dizer sempre a mesma coisa, inventava nomes, famílias, coisas para ver, etc, dependia da sua disposição e imaginação.
Hoje tinha decidido que seria Juan Carlos, um estudante de quinze anos, que falava castelhano e yamara e o trabalho de engraxador era apenas um part-time para ajudar a sua família e conseguir algum dinheiro para ir para Lima estudar.
Caso a sorte estivesse com ele, a meio da conversa começaria a pedir moedas dos países de origem – para puder observar o dinheiro que tinham na carteira -, canetas, algumas vezes sóis e outras conseguia convencer os estrangeiros a pagarem-lhe uma refeição.
Muitas vezes nem sequer falava com eles, apenas sentava-se à sua beira, seguia-os, forçando-os a pagarem-lhe uma refeição, jurando que não os chatearia mais, depois. Esta sua táctica valeu-lhe a alcunha de “Cola-sapatos”.
Os seus pais tinham sido os incentivadores a ele trabalhar e estudar ao mesmo tempo, sendo nos últimos tempo uma exigência, porque o dinheiro fazia muita falta. Tinha mais um irmão, tinha nascido há apenas quatro meses, apenas um dos seus irmãos o podia acompanhar nesta vida de engraxador, pois os outros ainda eram muito novos.
O que o acompanhava tinha apenas dez anos, ele era o mais velho entre cinco irmãos, sendo responsável por todos eles. Nos últimos tempos, o seu irmaozito, andava com ele para aprender os troques de ser um bom engraxador. Como ainda era muito criança, tinha que o entreter muitas vezes com as estórias que inventava para os turistas, que raramente tinha a oportunidade de lhes dizer e com isso tinha desenvolvido uma imaginação muito fértil. Provavelmente devido a isso, tinha-se inscrito numa peça de teatro na escola, onde descobriu que se sentia bem em palco, para além de ter sido o arquitecto de quase toda a peça. Desde aí, o reitor da sua escola, nomeou-o como o novo director artístico, encarregue de escolher as peças a representar todos os anos e de fazer os casting para escolher os actores por entre os seus colegas.
Poderia ser que um dia, um dos estrangeiros que apanhasse na rua, aceita-se que ele lhe engraxasse os sapatos e como recompensa lhe pagasse os estudos numa escola de artes cénicas em Lima. Sonhar nunca fazia mal e um dia destes representaria-o na escola, numa peça de teatro.

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