Não conseguia parar de olhar para a televisão. Era o terceiro dia consecutivo em que isso acontecia. Sempre que podia, ia ao café mais próximo, o único que tinha televisão, para dar uma espreitadela no que estava a acontecer e saber as últimas novidades sobre a situação.
Tinha doze anos e na altura o Sendero Luminoso e outro grupo extremista circulavam livremente pelo seu país com bombas, tiros, atentados, mortes e quebras de electricidade. Ninguém realmente se preocupava com isso, era como se de um hábito fosse, com o qual tinha nascido, não os haver é que era preocupante, algo de terrível deveria estar a ser preparado.
Terrível foi também o espectáculo que ocupou a televisão estatal durante duas semanas, um espectáculo chocante que nunca mais saiu da sua memória.
Numa das mais lotadas prisões do país, tinha havido uma revolta de reclusos que terminou com a tomada da prisão e estes exigiam helicópteros, dinheiro, a queda do governo, o apoio da população – do qual já diziam ter – e a liberdade. Como retaliação ao não cumprimento das exigências, por parte do governo, os reclusos foram matando guardas prisionais ao seu belo prazer e gosto. Isto tudo em directo na televisão, onde ele pode ver pela primeira vez pessoas a serem mortas de formas atrozes como espancamento, enforcamento, queimadas vivas, esfoliadas aos poucos e desmembradas, tal como mortes rápidas com tiros na cabeça, sendo depois lançados para fora dos limites da prisão. Tudo em directo na televisão.
Hoje, com vinte e nove anos, ainda não conseguiu visionar um filme de guerra ou de horror que tenha sido tão real ou mais horrível que aquilo que pode ver com apenas doze, tal como quase toda a gente da sua idade do seu país que tinha a possibilidade de ver televisão.
Tudo terminou como devia terminar na altura, com um assalto por parte das forças especiais do governo, matando tudo que lhes apareceu à frente, civis ou reclusos, uma autêntica chacina com que ninguém se importou, como ninguém na altura se importava com eles, os mortos, excepto com a sua própria morte.
Hoje recordava uma vez mais esta história, perante turistas que faziam com ele o caminho Inca, que gostava que permanecesse nos confins mais profundos da sua memória mas que nunca lá conseguiam chegar porque eram constantemente repescados, tanto pelos seus sonhos como pelos turistas que gostavam de ouvir este tipo de histórias. Enquanto contava esta história, conseguia observar uma certa luzinha que se acendia nos olhos destes estrangeiros que visitavam o seu país, e não era nem inveja ou arrogância de nunca terem vivido esses tempos difíceis, inexistentes nos seus ricos país, mas o interesse de ouvirem histórias reais vindas de pessoas banais, como eles, de outros países, com outras vivências e experiências de vida.
Tinha nome de um inventor, mas apenas usava os utensílios por si descobertos, carregava no botão e ela acendia-se. Edison de seu nome, era um guia turístico do caminho Inca há três anos. Gostava da experiência de conviver com estrangeiros mas acima de tudo, porque o seu país era pobre, proporcionava-lhe um nível de vida superior aos seus demais compatriotas. Isso era por demais evidente na roupa que vestia, nas botas que calçava, ao contrário do portadores que apenas calçavam umas sandálias e acima de tudo falava fluentemente inglês, o que lhe tinha sido proporcionado por aulas que frequentou, a vontade de aprender e o contacto permanente com estrangeiros, só possível pelo tempo fornecido pelo bom dinheiro que recebia.
Isto proporcionava-lhe um sentimento de mestiçagem, pois não era aceite como um verdadeiro descendente dos Incas, tal como os portadores, nem ser visto como um gringo, movendo-se entre a linha de contacto entre as duas personagens, sem puder ancorar em nenhuma delas.
Ao recordar a história da televisão e dos dias que se passaram a ver o desenrolar dos acontecimentos, sentia-se bem entre os gringos que o escutavam como se ele tivesse sido adoptado por eles.
quinta-feira, janeiro 08, 2004
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