No sapato, um grão de areia.
Remove-o.
Senta-se outra vez e observa o mesmo sapato. Outro grão de areia. Levanta-se e faz a mesma coisa.
Olha, e outro, outra vez no mesmo sítio. Será o mesmo?
Pega nele, o grão que está no sapato, põe-no na mesa junto de si, juntando-o a outros lá existentes.
Olha uma vez mais e depara-se com um outro grão, agora já seguro de ser outro. O que fazer?
Aquilo irritava-o profundamente, aquele desmazelo que só ele conseguia ver. Aquilo não lhe saía da cabeça. Aquele pequeno ponto branco manchava o seu limpo sapato preto, que ainda por cima tinha acabado de o engraxar.
Pegou no seu corpo, elevou-o da cadeira, tal como a sua perna direita, a que continha o pé rodeado com o dito sapato preto, sacudiu-o, e ficou feliz com o resultado. Nenhum grão. Agora sim!
Deu um passo, de triunfo e de retirada daquele sítio maldito, enterrando o passo na areia que o rodeava por todo o lado. Tinha-se esquecido que estava numa praia.
Tentou desesperadamente limpar o sapato conspurcado por todos aqueles novos grãos de areia, o que naturalmente lhe foi impossível. Por mais que sacudisse e removesse, eles apareciam sempre por todo e qualquer sítio, mesmo nos mais inacessíveis e inimagináveis à primeira vista. Para piorar a situação, a graxa fresca grudava ainda mais os grãos ao sapato.
O inicial preto sapato, estava agora um preto salpicado de minúsculos pontos brancos.
Parou com as tentativas infrutíferas de limpeza e permaneceu quieto a olhar para o seu pé durante alguns instantes. Já não se lembrava daquele pequeno grão que tinha dado início aquela obsessão, extinto da sua memória.
Por momentos hesitou entre limpar ou pôr o sapato no lixo.
Observava com cada vez maior atenção cada um dos grãos que manchavam o seu já não preto sapato, comparava-o com o outro, ainda imaculado, e sempre que o fazia, abanava a cabeça de desconsolo.
“Sapato meu, o que se passou pela tua cabeça para cometeres tal imprudência? Eras um sapato formoso, eu gostava de ti como eras. No meio dos meus outros sapatos, eras aquele para o qual os meus olhos brilhavam por rever. Até inveja provocavas nos teus colegas de trabalho. O que se passa contigo, estás doente? Olha para ti e para o teu irmão! Ele continua perfeito, limpo e preto. E tu? Que mais posso eu fazer de ti?”
Falava com o seu sapato, como se de um amigo fosse, com a consciência de que ele estava revoltado com algo que lhe tinham feito. Tentou averiguar a causa disso, mas ele respondia da única maneira que sabia e queria, o silêncio que trespassava por entre cada grão de areia que chafurdava na sua negritude.
Depois de muita hesitação e de muita conversa com o seu sapato, decidiu mover-se e juntar o sapato rebelde ao seu irmão imaculado, agora igual a ele, semelhantes na negritude falhada, a negritude salpicada de branco.
Não havia nada a fazer. Tudo tinha começado com um pequeno grão de areia persistente e insidioso. Para a próxima daria mais atenção ao pequeno grão que apenas queria falar com ele.
quarta-feira, janeiro 21, 2004
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