Decorria o ano de 1996, chovia e era Inverno, aí nada de novo, mas uma época anormal para estar a visitar Veneza, apesar de ser das melhores, senão a melhor, para lá ir e realmente desfrutar da cidade, dos seus encantos, labirínticas ruas e canais, conhecer autóctones e estudantes – das muitas faculdades de línguas aí existentes – que são diluídos, senão mesmo apagados, pela grande massa amorfa de turistas que quase todo o ano conquistam a cidade.
Nessa grande cidade-canal, gasta pelos anos e pelo mar, rejuvenescida sob o movimento, aparentemente, perpétuo das águas da chuva e pela distorção fornecida por milhares de poçinhas de água que se podem encontrar nas suas ruelas, e que à noite funcionam como espelhos imperfeitos da sua beleza primordial, criando outras novas imagens, de igual beleza, competindo com a dos canais, onde pequenas embarcações flutuam sob ondulantes imagens surgidas ao som das remadas e pequenas vagas, por si produzidas, constantemente rechaçadas pelos muros que dão apoio às casas.
Esvaziadas ruas onde se podem descobrir subtis belezas que a cidade oferece e encontrar uma faceta menos conhecida, as das pessoas que os livros nunca referem, da noite, dos seus labirintos… a sua respiração. Mas, nesse Inverno sentia a cidade a respirar.
Estranhamente a sensação penetrava no interior das pessoas, provocando uma torpor dos sentidos, semelhantes a uma embriaguez agradável, alterando a percepção da cidade. Era como outros olhos a vissem.
No meio deste turvo olhar, apareceu um vulto, grande, bastante grande, de uma mulher, definitivamente de origens nórdicas, onde as silhuetas são exuberantes, demasiado exuberantes para que um latino compreendesse as subtilezas destes largos traços. Era Norueguesa, estudava enfermagem e queria trabalhar na Inglaterra, não sabia porquê senão que desde miúda gostaria de ir trabalhar no país dos gentlemans. Ele era demasiado muito novo, ainda não tinha entrado na universidade (só o faria no seguinte ano lectivo) e nem sequer sabia o que lá queria estudar.
Encontro entre pessoas desconhecidas, que percorriam os mesmos trilhos e com raízes linguísticas semelhantes. Para além disso, realizavam uma viagem pela vasta Europa, num simples bilhete de inter-rail, aparentemente insignificante, mas que permitia viagens maleáveis, provocando a remodelação de trajectos iniciais. O deles, tornaram-se iguais e complementares. Ela ainda foi com ele até há sua cidade natal, Hamburgo, onde conheceu os seus pais e alguns dos seus amigos e depois rumou mais para norte, para o seu país.
Depois? Depois, o inevitável. Separaram-se, embora mantendo o contacto através de cartas, evitando que as portas entre eles se fechassem por completo. Mas o tempo desgasta a memória e apaga dela as recordações que não são exercitadas, reflectido nas cartas que vão escasseando. Isso ocorreu, até que a Internet proporcionou o recrudescimento e o avivar dela, não só através de mails, como pelo encontro em sites de conversação on-line e a visualização directa.
Durante os anos que se passaram, viram-se muito poucas vezes. Ambos tinham pouco tempo disponível. Ela já trabalhava em Londres, solteira e sem intenções de alterar esse situação - o seu último namorado tinha sido um autêntico pesadelo e o que a safou foi ele ter ido para a Austrália trabalhar. Ele, que ainda estudava, tinha decidido ser advogado. O que não fazia parte dos seus planos imediatos, era ter um desgosto amoroso, pois a sua namorada de longa data tinha-o deixado quando ele já pensava em casar e ter filhos com ela. De um dia para o outro perdeu o norte. Não sabia o que fazer e sentia-se frágil perante o mundo lá de fora, já não possuía um esconderijo onde se podia proteger. Tinha que sair dali e encontrar a paz interior.
Chegou a Lima com sete horas de antecedência em relação ao avião dela e, mesmo sabendo que o aeroporto era pouco seguro, resolveu esperar por ela lá. Não havia de ser muito pior que os hauptbannhof na Alemanha e, principalmente, na sua cidade, onde toda a escumalha se junta : punks, drogados, vagabundos, prostitutas, travestis, transexuais, dealers e outros que nem sequer tinham nomes para os descrever. Era só ter alguma atenção e nada de mal ocorreria.
Tudo isto começou em Veneza, é verdade, mas esta última situação tinha partido de uma piada feita por ela num dos seus encontros semanais na net:
“Que tal irmos ao Peru juntos? Íamos um mês, conhecíamo-nos melhor e, também, curaríamos, juntamente, os nossos desgostos amorosos?”
“OK!” respondeu ele, sem se aperceber que na altura tinha realmente respondido afirmativo e que isto o levaria aonde estava agora.
Chegado o momento, apenas esperava poder reconhece-la e não começar com o pé errado estas suas férias, que eram um sonho que ainda não acreditava estar mesmo a realizar. Tudo tinha acontecido depressa demais. Decidiram quinze dias antes e marcaram tudo a correr, tal como as papeladas, material e vacinas necessárias. A única coisa segura que queriam fazer no Peru era o caminho Inka. Tudo o resto era um bónus que viria como acréscimo. Isto englobava não só outros lugares magníficos que pudessem ver, como também algo que pudesse acontecer entre os dois, mesmo não sabendo, no que a si dizia respeito, se ela seria a mesma rapariga de quem se tinha apaixonado aos dezoito anos.
Primeiro queria reconhece-la e só depois se interessaria por ver se alguma coisa de Veneza ainda respirava dentro dele.
“Sete longos anos” pensavam os dois, ainda separados por um controle de bagagens, passaportes e um monte de pessoas que se apinhavam para observar quem chegava. Ainda não se tinham reconhecido, mas por ambas as cabeças passava a mesma ideia:
“Sete longos anos… Que faço eu aqui, no aeroporto de Lima? Estou do outro lado do atlântico e procuro quem? Outro ou a mim?”
“Sete longos anos” parece terem os dois ouvido. Tanto tempo!!! Cada um reencontrou o corpo, no olhar do outro.
“Hello!”
“Hey! How was your trip?”
segunda-feira, janeiro 12, 2004
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