Onde se encontrava iria ver o comboio passar umas quantas vezes, algumas acima, outras abaixo. Tudo isso devido à necessidade de ultrapassar os montes que rodeavam a cidade. Em vez de fazer círculos, ia para trás e para a frente, descrevendo linhas em ziguezague, um método original que o Estado peruano tinha desenvolvido para que o comboio chegasse a Cusco. A sua casa, a dos seus pais, era uma das muitas naqueles morros, ladeada por estes trilhos percorridos por máquinas repletas, todos os dias, de turistas esgotados pela extensa beleza do seu país, que ele não via, não compreendia e desconhecia aonde a iam encontrar. Toda a sua vida tinha sido passada por aqueles morros e não conhecia nada para além deles. Sobrevivia com base em esquemas que conseguia arranjar e que sempre ajudavam a minorar os problemas financeiros.
Tinham sido quatro dias fabulosos, percorrendo quilómetros e quilómetros pelos mesmos trilhos usados há centenas de anos por outros povos, subindo montes com alturas inimagináveis, à custa das suas duas pernas. Fazia-lhe bem sair da rotina de uma grande empresa, onde o único objectivo era mostrar serviço e tentar ser melhor que os outros, para que daqui a uns anos pudesse descansar e usufruir, finalmente, do dinheiro que viria a ter, um dia.
Estava na hora, mas ainda nenhum sinal na noite já instalada tinha ainda sido detectado.
“Para variar vem atrasado” disse ele, esboçando um sorriso, pensando que a causa disso seria o ócio que os turistas transportavam, dificultando a marcha normal do comboio.
“Markus que horas tens?”
“São dezanove horas. Ainda falta uma hora e meia para chegarmos.”
“Que seca.” disse-o sem real preocupação do possível atraso que já se avizinhava. As luzes da cidade de Cusco apareciam por detrás das janelas de vidro e deslumbravam os olhos de todos.
O comboio tinha percorrido calmamente o seu caminho, parando apenas duas vezes em pequenos apeadeiros vazios, onde os turistas aproveitavam para dar uns passos desatrofiadores, comprar cerveja, água, tabaco e algumas guloseimas. Sendo estações muito pequenas, ali se sobrevivia das ajudas de conhecidos a outros conhecidos, os dos bares das estações, pelo fornecimento de turísticas ansiosos por gastar mais uns sois nestes pequenos estabelecimentos, onde se reabasteciam para o resto da viagem.
Fora este tipo de pequenas interrupções, o comboio, a partir de uma certa altura da viagem, começou a parar regularmente onde não havia nenhuma estação para quase de imediato recomeçar a andar, estranhamente, em sentido contrário e não percorrendo os mesmo trilho até aqui usados. Aparentemente este método de condução funcionava, as luzes da cidade estavam cada vez mais perto.
“Bizarro” pensava ele “mas que importa, desde que me leve à cidade. Enquanto isso vou aproveitando a vista e observar estas terras de barro que por aqui existem.”.
Um som inconfundível, para ele, surgia nas suas costas. A hora que esperava, aproximava-se. Necessitava de alguma sorte para além da sua agilidade natural. Iniciou-se nesta vida aos doze anos, hoje já tinha quinze, considerado um veterano nestas andanças, por isso seria o mentor do seu irmão. Este seu irmão era o mais velho de entre os mais novos. Ao todo eram oito filhos da mesma mãe, sendo ele o mais velho de todos e o seguinte, o que o acompanhava, tinha onze. Para aprender o ofício, o seu irmão seguia-o para todo o lado, a observar tudo, tentando imitá-lo, mas ainda não era a hora de ele começar a agir, ainda tinha muito que aprender.
Estava quase na hora.
Já começava a ficar farto deste vai e vem do comboio, que parecia não terminar e levar a lado nenhum. A cidade parecia estar no mesmo sítio, à mesma distância.
“Boring!” comentou com os seus companheiros de viagem (um inglês, dois australianos e um português).
“That’s right mate!”
“Fucking stupid boring, I tell you.”
“What? I was already sleeping, what did you say?”
“I should be sleeping.”
“yeah. Ok.”
Levantou-se para abrir a janela e fazer com que algum ar penetrasse e pudesse cheirar melhor o exterior. Pelo ar que começava a entrar, a noite parecia que iria ser fria. O comboio parou mais uma vez.
“PUM!”, alguém tinha aberto a porta da sua carruagem. Da escuridão apareceu um pequeno vulto, magro de constituição e enguia de movimentos. Esticou os pequenos tentáculos de polvo e agarrou num saco que puxou imediatamente para a sua toca, a escuridão da noite, devorando-o rapidamente.
Nem dez segundos se tinham passado O comboio voltou à sua marcha, em sentido contrário, e só então se apercebeu que o saco era o seu, que ele tinha desaparecido e que aquilo tinha sido um roubo. Correu para a porta aberta e gritou:
“That’s my bag. That’s my bag. That’s my bag you mother fucking stupid Peruvian thief. If I catch you in my hands I don’t know what I’ll do to you, you fucking thief. That’s my bag. That’s my bag”
Tinha-lhe corrido bem o assalto, ninguém o apanhou, quase ninguém se apercebeu do que se tinha passado, o que lhe facilitou a fuga. Para mais a mochila estava mesmo ali sozinha e plantada no meio do corredor com uns grandes sinais luminosos a dizer: “Agarra-me se conseguires.”
“Foi um trabalho irresistível e limpo” dizia para o seu irmão mais novo que o acompanhava “mas ainda não acabou.”
Revistou apressadamente o saco à procura de valores. Metia as suas mãos no seu interior como uma faca quente atravessa manteiga e de lá tirava apenas alguns objectos.
“Queres umas botas novas? São um bocado grandes não?”
Da outra mão um objecto metálico saiu, era uma máquina fotográfica, tinha-lhe calhado a sorte grande. Já ia a pôr as mãos outra vez no saco quando ouviu alguém a aproximar-se rapidamente dele:
“Ladrão filho de uma grande puta. Se te apanho.”
“Está na hora de ir para casa mano. Rápido, corre.” desatou a correr pelos montes acima, protegido pela escuridão, por entre as casas de barro pouco iluminadas, seguro que nem ele ou o seu irmão seriam apanhados e com o dia ganho na sua mão esquerda.
Correu com cara de poucos amigos em direcção a um revisor, enquanto os passageiros da sua carruagem se iam apercebendo do que realmente tinha ocorrido.
O revisor olhava para o gigante norueguês com uma cara incrédula por não perceber a razão da sua fúria e muito menos a língua em que era expressa.
Já nada se podia fazer, o comboio estava em movimento e o ladrão já devia estar muito longe dali, seria impossível encontrá-lo.
Enquanto corria, já a poucos metros de casa, só pensava no sorriso na cara da sua mãe, com o seu mais pequeno irmão às costas, ao vê-lo com tamanha recompensa e no prato de comida que lhe seria dado pelo bom trabalho realizado.
Só agora, que pensava na comida, se apercebeu que as dores que o afligiram toda a tarde eram de fome. Tinha-se esquecido de comer e a barriga reclamava. Desde o pequeno almoço que não tocava em comida.
Encontrava-se na estação de Cusco rodeado por revisores, pessoal que trabalhava nas linhas de comboios e polícias. Fartavam de lhe dizer coisas que ele não compreendia, qualquer coisa como “Tem calma que tudo já se resolve”, mas realmente não sabia.
Sorte a sua que o seu ensonado companheiro português conseguia comunicar na língua deles e começou a traduzir-lhe o que lhe diziam.
Tinham encontrado o seu saco. O maquinista da última carruagem tinha visto o puto saltar para dentro do comboio e assim que percebeu o que fazia, correu atrás dele, mas não chegou a tempo de evitar que a mochila fosse revistada pelo puto, não sabendo se faltava alguma coisa.
“Estranho. Que estranho. Como conseguiram recuperar. Estranho”
Assim que lhe deram a mochila, despejou todo o seu conteúdo no chão, para verificar se faltava alguma coisa. Aparentemente só faltava a máquina fotográfica, mais nada. Dinheiro, carteira, cartão de crédito e mesmo o passaporte, estava tudo ali.
“Vai querer apresenta queixa na polícia senhor?”
“Claro que sim. Que tenho que fazer?”
“Siga-me por favor.”
Eram já dez da noite e a escuridão que se abateu sobre a cidade permanecia a mesma, mas sentida de maneiras diferentes. Enquanto o puto de quinze anos matava a fome esquecida, no prato de comida que a mãe lhe tinha preparado como recompensa, o turista norueguês tentava comunicar, com alguma esperança, com os polícias, que não sabiam esperanto, só castelhano, que ele nada compreendia, quase preferindo falar com as paredes.
quinta-feira, janeiro 15, 2004
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