sábado, janeiro 10, 2004

Vida inútil

Recebeu mal a notícia, não só porque se encontrava muito cansado devido a uma doença enviada pelos Deuses, como pela notícia em si.
Afinal tudo tinha começado com uma trovoada, habitual na época das chuvas, onde um, desculpem, dois acontecimentos inesperados transformaram a cidade dos Deuses em uma cidade amaldiçoada.
Em apenas setenta e cinco anos foi tudo construído, desde a cidade dos Deuses, aos caminhos que iam ter a ela e tal como as cidades de suporte, tanto para a cidade como para os peregrinos que para lá iam.
Ele tinha dado no duro, dado todas as forças que tinha até ter sido atacado pela calada por uma maldita doença, tentado realizar os sonhos de um reino poderoso e supremo – tanto em força, beleza, superioridade e extensão - e a cidade era o apogeu dessa civilização, o orgulho dos Deuses seus Reis e do seu povo.
Descansava nessa cidade magnificamente construída no topo de uma montanha de pedra, a uma altura bastante grande, pois situava-se acima das nuvens, rodeada por montanhas maiores, apenas separadas por grandes vales onde rios puros corriam de água sagrada.
Tinha assistido a tudo, pois adoeceu pouco antes de tudo ocorrer. Numa noite de trovoada, um raio abateu-se sobre o templo do sol, abrindo uma cissura na pedra dos sacrifícios, o sítio mais sagrado da cidade. Para além disso, o grande estrondo provocou o desalinhamento do muro de um templo ainda em construção, finamente trabalhado para durar milhares de anos. Tudo isto foi visto, pelos sacerdotes da cidade, como sinais claros de desaprovação dos Deuses perante a localização da cidade.
Fora estes acontecimentos inusuais, já há algum tempo que uma doença desconhecida se abatia sobre a população das cidades satélites e finalmente chegava à cidade dos Deuses. Ele tinha sido um deles e um dos poucos que a ela tinha sobrevivido, os Deuses o tinham poupado por razões desconhecidas. Também isto era interpretado como um castigo dos Deuses, que a infligia por considerar os seus súbitos pecadores.
A decisão estava tomada, toda a gente devia abandonar a cidade o mais depressa possível, esquecer que ela alguma fez existiu e nunca mais falar sobre ele, pois os Deuses castigariam essas pessoas com a misteriosa doença.

Não gostava de partir, não só por ser uma cidade linda mas principalmente por a ter construída com as suas próprias mãos. Gostava que o deixassem ali a morrer, naquele leito no meio daquela “sua” cidade, mas não lhe concederam esse desejo e transportaram-no juntamente com o resto da população.

Anos mais tarde, muito longe da sua cidade perdida e revista apenas em sonhos, onde nunca mais tinha voltada, nem nenhuma outra pessoa do seu povo, falou aos seus netos sobre ela, mas eles não acreditaram porque não constava em nenhum registo e nenhum Rei ou Sacerdote falava sobre essa cidade amaldiçoada.
Isso fê-lo morrer de desgosto, como podia uma cidade que ele tinha ajudado a construir e quase morrido por ela, fosse tão facilmente esquecida.
O seu nome foi-se evaporando juntamente com as memórias que iam perecendo, não ficando nenhum registo e só muitos séculos mais tarde algum ser humano pisaria outra vez aquela cidade dos seus sonhos, hoje com um outro nome, mas tão magnifica como a tinha deixado.

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