domingo, dezembro 26, 2004

Olhar de quam já cá não está

Olhava lentamente à sua volta, sem nada procurar ou focar. Dos seus olhos irradiavam linhas vermelhas que não se viam devido à penumbra que o rodeava mas que os sulcos mais que profundos por debaixo dos olhos delineavam com um negrume ainda maior que o negro a que a penumbra tudo reduzia. Pestanejava com alguma dificuldade e um som quase imperceptível saía deles, semelhante a um roçar entre mucosas secas.

“Wake up! Wake up!...”

Olhava para o telemóvel e era sempre a mesma hora, sempre a maldita da mesma hora.

“Wake up! Wake up!...”

e aquela voz que vinha de fora, penetrava por entre os seus íntimos pensamentos e lhes ocupava a posição. Já não tinha pensamentos, apenas aquela voz, uma voz que não era a sua e não sabia de onde era, nem de quem poderia ser.

“Wake up! Wake up! It’s 3 o’clock in the morning…”

Tinha surgido há mais ou menos dois meses. Inicialmente não o incomodava por ser muito menos intensa, quase imperceptível e facilmente ignorada.

“…it’s time to…”

Progressivamente foi crescendo, começando lentamente a ocupar-lhe todos os pensamentos. Conseguia isso através de uma presença contínua e também por lhe conseguir expulsar qualquer outro tipo de pensamento que lá se encontrasse ou surgisse.

“Now it is time. Wake up and stand before me..”

Não sabia mais o que fazer. Surgia-lhe todos os dias as três da manhã para o acordar e não o deixava voltar a adormecer. Cada novo dia que surgia era, agora, apenas mais uma pequena gota no acumulado mar de sono por dormir e tudo começava a não fazer sentido na sua cabeça, como ao mesmo tempo tudo começava a encaixar dentro de uma lógica não lógica. A realidade e a ficção. Não seria a ficção, realidade na verdade? Ou não seria a realidade uma ficção materializada como realidade?

“Wake up! It’s 3 o’clock in the morning. Look around you and see the time. It is time!”

Lentamente abriu os olhos, o que quase pressentia como uma dor devido a ter pouca lubrificação. Não contestou a ordem, fez um esforço e ignorou a dor. Pegou no telemóvel e viu as horas “três da manhã”. On time.
Sim são três da manhã.

“So wake up. It’s time to wake up and stand before me…”

Nunca passava daquilo, nunca dizia quem era ou retribuía conversação. Apenas dizia aquilo, aquelas frases, monótonas e repetidamente. Pelo menos era o que lhe parecia. Já não sabia de nada. Já tudo estava demasiado desconexo na sua cabeça. Não conseguia recordar quando tinha sido a sua última refeição, quando tinha falado com alguém, quando tinha saído de casa…nem sabia se realmente estava em casa, na sua cama. Já não conseguia focar o que quer que fosse. Os olhos estavam demasiado cansados.

“Wake up! Wake up!”

E lá estava a maldita voz outra vez, dentro da sua cabeça, a ocupar todo o seu espaço. Nada já fazia sentido com o mundo lá de fora, daquele que ainda conseguia recordar, vagamente, e por isso nem a isso tinha a certeza de puder comparar.

“It is time…”

O relógio permanecia a dizer constantemente a mesma hora, 3 o’clock, e parecia querer ali permanecer para a eternidade.

“Wake up…”
Sempre a mesma voz, irritante, na sua cabeça, não era a sua e não o deixava dormir ou pensar. O tempo não passava do mesmo sítio, tinha ancorado nas três da manhã e a voz na sua mente. Já nem sequer conseguia perguntar a si mesmo se estava a enlouquecer. Não o precisava. Era desnecessário. Sabia perfeitamente que já não lhe faltava mais qualquer passo para dar na sua direcção.

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