sexta-feira, janeiro 30, 2004

Ponteiro...

O relógio não pára,
Mesmo partido,
O ponteiro prossegue
Sempre.

Esperando que continue,
Enganamo-nos ao pensar que não,
No mesmo sítio,
Por vontade própria, ilusão
O tempo,
Estagna na mente.

Um livro na mão,
Fingir enganar o tempo,
Olhos que pisam riscos,
Como carros atravessam metas,
Sem realmente saberem quando o fazem.

O tempo não se engana,
A ruga aparece,
Olha para trás,
Não se recorda.
Aquilo na verdade nunca aconteceu,
Não há memória,
Num relógio do tempo
Quebrado.

terça-feira, janeiro 27, 2004

Capitâes de Areia (Jorge Amado)

Silhueta negra,
Esguia, afunilada em dois traços.
No topo, perto,
Um brilho rasga-a.

Um sorriso,
Reflectido na areia molhada,
De um pôr de sol.

domingo, janeiro 25, 2004

.............

Tudo começou aqui e acabou depois neste momento.
Agora os textos surgirão de uma forma mais lenta e espaçada e sem terem uma geografia como denominador comum.
Entretanto houve a formação disto, um projecto menos extenso, mais cínico, com mais comentários e a manter a inutilidade da escrita.

A Profissão Mais Perigosa

Diziam que era mais perigoso que ser bófia. O número de pessoas acidentadas e mortas na sua profissão era bem maior que a dos polícias e militares juntos, e estes tinham um número de efectivos bem superior. Tudo isto vinha escrito no jornal desse dia.
Sentia-se orgulhoso. Trabalhava no emprego mais perigoso do seu país, apesar de ninguém o suspeitar. Ao mesmo tempo sentia algum receio a crescer dentro de si porque nunca tinha pensado no seu trabalho sob esse prisma.
Tinha uma mulher, filhos e uma sogra para sustentar, o que já era difícil, mas mesmo assim conseguia guardar um dinheirito para distribuir por algumas mulheres de afecto que existiam em todo o lado. E muito necessitava ele delas e dos seus carinhos em algumas situações da sua vida profissional. Eram excelentes companhias temporárias. Não via nisso qualquer tipo de traição. Eram apenas as vicissitudes do ofício e aceitava-as calmamente como tais.
O que seria delas todas se ficasse estropiado ou mesmo morresse? Provavelmente a mulher teria que rumar pelos mesmos trilhos dos das mulheres de afecto e talvez até mesmo a sua filha de apenas doze anos. Mas isso é que não. Uma mulher sua, e filha, nunca seriam uma dessas rameiras. A sua filha não podia abdicar do sonho que ele e a sua mulher tinham construído por ela, o de tirar um curso superior que lhe proporcionasse uma vida melhor que a deles.

A notícia no jornal tinha-lhe feito relembrar um episódio, cómico para si, ocorrido há apenas uns dias com um estrangeiro que viajava no autocarro que tripulava.
Ele, como sempre, devido aos anos de experiência, conduzia tranquilamente pelas sinuosas estradas que unem Cusco a Lima. Como Cusco se situa no meio dos Andes, a estrada, principalmente os primeiros mil quilómetros, é particularmente conhecida pelas suas intermináveis curvas. Como agravante, nem toda ela está alcatroada. Ele já fazia esse percurso em piloto automático, conhecia todas as curvas, as mais perigosas, onde estavam os buracos ou onde tinham trocado de sítio, onde podia acelerar e onde devia travar. Orgulhava-se de ser o único motorista sem qualquer acidente naquela estrada. E não era por andar a passo de caracol, pois conseguia ser quase tão rápido como os mais rápidos. Não detendo o recorde do percurso, já tinha conseguido andar lá muito perto.
O turista daquele dia devia estar mesmo assustado. Suava, encontrava-se muito pálido e apenas articulava umas meras palavras, sempre as mesmas:
“Tengo miedo de la velocidad!” não conseguia parar de as repetir.
Devia estar realmente cheio de medo, para além dessas palavras proferidas em castelhano, mais nada disse. Ficou sem saber se o turista sabia falar mais alguma coisa para além delas. Como consequência da grande ansiedade sentida por este estrangeiro, que não dormiu nada durante as dezasseis horas de viagem e ainda por cima de noite, fez-lhe companhia até Lima, sentado ao seu lado na cabina do motorista, bem agarrado a uma barra na porta, não despegando dela até o autocarro ter parado no seu destino. Crê que a barra era como o fio que unia aquele homem à vida, se a largasse morreria seguramente.

Este episódio era-lhe relembrado pela notícia de hoje.
A sua mulher chegou a casa e desconcertada por o ver a reflectir, algo raro nele, perguntou de imediato “Qui pasa hombre?”
Ele hesitou por momentos, tinha sido apanhado de supressa pela sua mulher e não estava a compreender a pergunta. Não contava que ela o visse com um ar preocupado, para disfarçar, rapidamente transformou a sua cara num sorriso descontraído e gritou:
“Mira, mira la notícia. Diz aquí que la profición más peligrosa del Peru es a de motorista de vehículos pesados e de pasajeros. Imagina iso, yo que ya trabrajo a más de veinte años e nunca a tenido un accidente. Estés periódicos están siempre inventando mentiras, no tiene nada más para dicer, tal qual los políticos. Son todos iguales.”

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Sr. Bigodes

Tudo pronto: cinto colocado, retrovisor no sítio, bigode aparado e alisado – que faz questão de lamber antes de o alisar com dois dedos, partindo do mesmo lugar e rapidamente rumarem em sentidos opostos –, óculos de sol e auricular do telemóvel instalado no ouvido esquerdo. Tudo pronto, disse ele mais uma vez para si. “Más un servicio realizar e dinero llegar”, cantava.
Fazia a sua vida com o carro que tinha comprado com muito custo, trabalhando e divertindo-se ao mesmo tempo. Era um taxista que fazia um pouco de todos os serviços, desde transferes a viagens banais no meio de Lima. Para ele era indiferente, pois enquanto trabalhava realizava uma das tarefas que mais gostava de fazer, guiar. A sua vida não era fácil e a concorrência era muita. Por isso tinha que se associar a agências de turismo. Era um condutor seguro e de confiança, e ganhava com isso boas gorjetas.
Hoje tinha como serviço buscar uns estrangeiros a uma praia relativamente perto de Lima. O negócio quase que lhe valia pelo resto do mês, mas o dinheiro nunca era demais. Cobrou um preço chorudo, eles não regatearam, um serviço mais que fácil, onde não tinha que esperar por ninguém em nenhuma estação imunda e perigosa. Apenas ir lá buscá-los, provavelmente vermelhos que nem uns tomates de tanto sol que apanharam.
Tinha orgulho de ser correcto e de não interferir com os seus clientes. Só falava o estritamente necessário e só quando lhe perguntavam. Caso contrário, permanecia calado como muito bem gostava de estar e tanto a sua mulher odiava.
“Pinga Eddy, habla alguna cosa. Ti quedas a más de dos horas delante de la televisión e ninguna palabra me as dirijido.” Respondia-lhe sempre com alguns monossílabos incompreensíveis, sem parar de ver televisão e de lhe prestar atenção, indiferente ao que se passava ao seu redor. Simplesmente fechava todas as entradas para o seu interior e mais ninguém conseguia lá penetrar, para além dele.
Chegou ao local combinado, mas não encontrou vivalma. “Devem ainda estar dentro do hostal.”, pensou ele em voz alta enquanto olhava pelo retrovisor para alinhar o penteado, lamber novamente os bigodes e os alisar com os dedos. Saiu do carro com os óculos de sol e dando-se-lhe ares de pessoa dura, dirigiu-se à estalagem. Lá os encontrou, ainda a almoçar.
“Tudo bien?”
“Sim, sim. Desculpa lá Eddy, mas estamos um pouco atrasados, não só porque ainda estamos a almoçar, mas porque fazemos tempo para que a dona do hostal apareça, e possamos pagar a nossa estadia. Ela saiu de manhãzinha e ainda não voltou. Pelo que nos disseram chega daqui a nada.”
“No ai problema, tomen lo tiempo que necesitan.”
“Queres entrar e comer connosco? Entra aí, pago-te um copo.”
“Non gracias, voi dirijir e quando lo hace no bebo. yo estoy muy bien cá fuera. Mi quedo no carro esperando por usted. Hasta luego.”
“Como queiras.”
Voltou para o carro, sentou-se com a porta do seu lado aberta. Estava muito calor e apetecia-lhe uma cerveja. O que tinha dito há pouco não era verdade. A verdadeira razão para não ter aceite a bebida oferecida era porque não gostava de confraternizar com os seus clientes. “Clientes são clientes, amigos são amigos e é melhor mantê-los separados.” Para isso mantinha sempre a sua posição de subalternidade perante os clientes, nunca se elevando na sua presença. Eles mandam e eu obedeço. Desde que paguem, por mim está tudo bem. Eu sou um profissional.
A espera demorou pouco tempo, eles reapareceram poucos minutos depois e mais rápida foi a sua viagem de volta a Lima. Pelo menos pareceu-lhe. Deixou-os no Hotel, despediu-se, contente por ter realizado um trabalho limpo e rápido, ter andado de carro – que tanto gozo lhe proporcionava – e regressar a casa com os bolsos recheados.

Orgulhoso de si, tanto quanto do seu pequeno bigode bem aparado e alinhado com cuspo, quando chegou a casa tinha um sorriso que não conseguia conter nos lábios. Abriu a porta com os olhos a brilhar, acompanhando os lábios, tapados pelos óculos de sol que se tinha esquecido de tirar. Depositou o dinheiro em cima da mesa da cozinha, rumou directo ao seu sofá em frente da televisão, sem reparar no ar embasbacado da sua mulher que, esquecendo-se de responder ao cumprimento que ele lhe fez, já só pensava em que é que o havia de gastar.

Sentou-se, ligou a televisão e pensou no sossegado serão que teria pela frente. Apenas ali, sem ninguém para o chatear e no presente que receberia à noite, da sua mulher, pelos bons serviços prestados. Poderia ser que hoje fizessem um filho.
Sorriu ao som desse seu pensamento, alisou com os dedos o bigode lambendo-o de seguida, sem se dar conta que o fazia pela primeira vez nesse dia pela ordem inversa do habitual.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Pequeno grão de areia

No sapato, um grão de areia.
Remove-o.
Senta-se outra vez e observa o mesmo sapato. Outro grão de areia. Levanta-se e faz a mesma coisa.
Olha, e outro, outra vez no mesmo sítio. Será o mesmo?
Pega nele, o grão que está no sapato, põe-no na mesa junto de si, juntando-o a outros lá existentes.
Olha uma vez mais e depara-se com um outro grão, agora já seguro de ser outro. O que fazer?
Aquilo irritava-o profundamente, aquele desmazelo que só ele conseguia ver. Aquilo não lhe saía da cabeça. Aquele pequeno ponto branco manchava o seu limpo sapato preto, que ainda por cima tinha acabado de o engraxar.
Pegou no seu corpo, elevou-o da cadeira, tal como a sua perna direita, a que continha o pé rodeado com o dito sapato preto, sacudiu-o, e ficou feliz com o resultado. Nenhum grão. Agora sim!
Deu um passo, de triunfo e de retirada daquele sítio maldito, enterrando o passo na areia que o rodeava por todo o lado. Tinha-se esquecido que estava numa praia.
Tentou desesperadamente limpar o sapato conspurcado por todos aqueles novos grãos de areia, o que naturalmente lhe foi impossível. Por mais que sacudisse e removesse, eles apareciam sempre por todo e qualquer sítio, mesmo nos mais inacessíveis e inimagináveis à primeira vista. Para piorar a situação, a graxa fresca grudava ainda mais os grãos ao sapato.
O inicial preto sapato, estava agora um preto salpicado de minúsculos pontos brancos.
Parou com as tentativas infrutíferas de limpeza e permaneceu quieto a olhar para o seu pé durante alguns instantes. Já não se lembrava daquele pequeno grão que tinha dado início aquela obsessão, extinto da sua memória.
Por momentos hesitou entre limpar ou pôr o sapato no lixo.
Observava com cada vez maior atenção cada um dos grãos que manchavam o seu já não preto sapato, comparava-o com o outro, ainda imaculado, e sempre que o fazia, abanava a cabeça de desconsolo.
“Sapato meu, o que se passou pela tua cabeça para cometeres tal imprudência? Eras um sapato formoso, eu gostava de ti como eras. No meio dos meus outros sapatos, eras aquele para o qual os meus olhos brilhavam por rever. Até inveja provocavas nos teus colegas de trabalho. O que se passa contigo, estás doente? Olha para ti e para o teu irmão! Ele continua perfeito, limpo e preto. E tu? Que mais posso eu fazer de ti?”
Falava com o seu sapato, como se de um amigo fosse, com a consciência de que ele estava revoltado com algo que lhe tinham feito. Tentou averiguar a causa disso, mas ele respondia da única maneira que sabia e queria, o silêncio que trespassava por entre cada grão de areia que chafurdava na sua negritude.
Depois de muita hesitação e de muita conversa com o seu sapato, decidiu mover-se e juntar o sapato rebelde ao seu irmão imaculado, agora igual a ele, semelhantes na negritude falhada, a negritude salpicada de branco.
Não havia nada a fazer. Tudo tinha começado com um pequeno grão de areia persistente e insidioso. Para a próxima daria mais atenção ao pequeno grão que apenas queria falar com ele.

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Rede

Em terra estranha,
Língua estranha,
Hábitos estranhos,
Pessoas que também o são.

Pedaços brancos,
Como companhia,
(no) presente para o futuro,
onde rasgos de azul,
relâmpagos que não se vêem,
só se pressentem pela sua luminosidade.

Delicerando,
Carnívoras ávidas de carne,
Branca,
Turvando-a cada vez mais de azul.

Um recanto,
No meio da estranheza.

Pessoas reais,
Cravadas na pedra,
Inscritas como personagens
Noutras vidas,
Adulteradas, em
Actores da comédia,
(da) vida real.

Pequenas obreiras,
Formigas que nunca pararam,
Ocupando espaços
Criando espaços neles
Transformando-se no próprio espaço.

Num espaço estranho,
Decorado de azul,
Branco de início, memória do diferente,
Retida numa rede,
Agora familiar (como a lã de bebé alpaca).

sexta-feira, janeiro 16, 2004

Hostal Toñis

Com um mata-moscas na mão e uma grande vontade de matar as ditas, percorria a sala de jantar como um scanner varre uma superfície, sem lhe escapar nada.
“Perdona, mas estes bichos deixam-me louca. Perdona!”
Gostava de um dia poder passear pelos Champs Elisé, visitar a torre Eifel, a sagrada família em Barcelona, o Big Ben em Londres ou as tulipas da Holanda, onde lá tinha uma irmã a trabalhar como doméstica numa casa privada. Por mais que quisesse ir, agora só estava interessada em duas coisas, em matar as moscas e em meter conversas com os seus hóspedes, que nesse momento tomavam o pequeno almoço.
“Perdona una vez más, mas estes insectos, puta madre!”
“ZÁS!” e menos uma mosca à face da terra, sendo prontamente varrida para debaixo da porta em direcção à rua poeirenta que existia por detrás dela.
“Gostaria muito de visitar o vosso país, tal como outros na Europa. Já tive na Holanda, tenho lá uma irmã. Aquilo é que é um país, bonito, tudo bem arranjado, ordenado e toda a gente é rica. A minha irmã diz que é muito feliz lá e que já não volta.” dizia isto aos seus hóspedes, enquanto matava as moscas e pedia desculpa pelo acto grosseiro.
“Mas isto está muito melhor do que há uns anos. Desde que o terrorismo foi erradicado por aquele “Chino corrupto”, ao menos fez alguma coisa, que já se pode viajar pelo país, as pessoas já vêm à praia, jantam fora e já não passam fome. Muita coisa tem mudado nos últimos tempos.”
A senhora Toñis, diminutivo de Maria Antonieta, gostava muito de falar com os seus hóspedes, saber de onde vinham, o que faziam na vida, porque tinham escolhido a praia de Punta Negra para banharem os seus corpos e em contrapartida falava sempre um pouco da sua vida, já um pouco extensa.
“ZÁS!” e mais uma mosca morta e varrida de imediato. “Perdona!”.
Estes hóspedes eram diferentes, era raro hospedar estrangeiros por aquelas bandas, normalmente eles ficavam por Lima, a uns cinquenta quilómetros dali ou passavam pela auto-estrada mesmo ali ao lado em direcção a sítios mais turísticos do Peru. Para além da raridade, a estância balnear tinha como destinos peruanos da classe média, sem grandes possibilidades financeiras, que não procuravam a animação nocturna mas apenas um pouco de Sol, praia, mar e descanso. Os poucos turistas que por ali apareciam por engano, eram surfistas, mas esses queriam era a praia de nome Punta Hermosa, um pouco mais a norte.
“No vosso país há emprego?”
“Perdona mas.. “ZÁS!”, non me gosta las moscas. Perdona!”
Qualquer oportunidade era boa para meter um pouco mais de conversa e para além disso estes hóspedes falavam fluentemente castelhano o que fazia fluir a comunicação.
“É bonito? Agora lá é Verão?”
Continuava à procura de moscas, “ZÁS!” mesmo sabendo que não havia mais nenhuma, “Perdona!” tentando prolongar este momento matinal. Eles sorviam calmamente o seu leite com café embebendo nele torradas que mastigavam vagarosamente, fazendo tempo para que o Sol afastasse as nuvens que o impediam de dizer olá aos habitantes daquela praia. Falar com a senhora Toñi’s parecia ser um bom entretenimento para fazer passar o tempo mais depressa e tinham, pelos menos aparentemente, uma certa empatia com ela pois era atenciosa, possuía um hostal muito asseado e não era gananciosa. Estavam ali por um apontar ao calhas num mapa peruano, pelo que foi um dedo o responsável pela sua ida para lá, onde apenas tinham o desejo de descansar, antes de se despedirem, para sempre, do país.
“Quando é que pensam cá voltar? Ou nem sequer pensam em cá voltar?” perguntou a senhora Toñi’s enquanto eles encaminhavam-se para a praia, com as tolhas nos ombros, um chapéu na cabeça e um livro numa das mãos. Eles não responderam, já estavam longe demais para o fazer, mas não havia problema pois não tardava nada voltariam para o almoço e ainda ficavam mais uma noite. Haveria ainda muito tempo para meter conversa.
“ZÁS!” “Menos uma mosca nesta terra.” disse ela, já a varre-la para debaixo da porta em direcção à poeira aonde parecem estar enterradas todas as moscas lá da terra.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Trilhos em zigue zague

Onde se encontrava iria ver o comboio passar umas quantas vezes, algumas acima, outras abaixo. Tudo isso devido à necessidade de ultrapassar os montes que rodeavam a cidade. Em vez de fazer círculos, ia para trás e para a frente, descrevendo linhas em ziguezague, um método original que o Estado peruano tinha desenvolvido para que o comboio chegasse a Cusco. A sua casa, a dos seus pais, era uma das muitas naqueles morros, ladeada por estes trilhos percorridos por máquinas repletas, todos os dias, de turistas esgotados pela extensa beleza do seu país, que ele não via, não compreendia e desconhecia aonde a iam encontrar. Toda a sua vida tinha sido passada por aqueles morros e não conhecia nada para além deles. Sobrevivia com base em esquemas que conseguia arranjar e que sempre ajudavam a minorar os problemas financeiros.

Tinham sido quatro dias fabulosos, percorrendo quilómetros e quilómetros pelos mesmos trilhos usados há centenas de anos por outros povos, subindo montes com alturas inimagináveis, à custa das suas duas pernas. Fazia-lhe bem sair da rotina de uma grande empresa, onde o único objectivo era mostrar serviço e tentar ser melhor que os outros, para que daqui a uns anos pudesse descansar e usufruir, finalmente, do dinheiro que viria a ter, um dia.

Estava na hora, mas ainda nenhum sinal na noite já instalada tinha ainda sido detectado.
“Para variar vem atrasado” disse ele, esboçando um sorriso, pensando que a causa disso seria o ócio que os turistas transportavam, dificultando a marcha normal do comboio.

“Markus que horas tens?”
“São dezanove horas. Ainda falta uma hora e meia para chegarmos.”
“Que seca.” disse-o sem real preocupação do possível atraso que já se avizinhava. As luzes da cidade de Cusco apareciam por detrás das janelas de vidro e deslumbravam os olhos de todos.
O comboio tinha percorrido calmamente o seu caminho, parando apenas duas vezes em pequenos apeadeiros vazios, onde os turistas aproveitavam para dar uns passos desatrofiadores, comprar cerveja, água, tabaco e algumas guloseimas. Sendo estações muito pequenas, ali se sobrevivia das ajudas de conhecidos a outros conhecidos, os dos bares das estações, pelo fornecimento de turísticas ansiosos por gastar mais uns sois nestes pequenos estabelecimentos, onde se reabasteciam para o resto da viagem.
Fora este tipo de pequenas interrupções, o comboio, a partir de uma certa altura da viagem, começou a parar regularmente onde não havia nenhuma estação para quase de imediato recomeçar a andar, estranhamente, em sentido contrário e não percorrendo os mesmo trilho até aqui usados. Aparentemente este método de condução funcionava, as luzes da cidade estavam cada vez mais perto.
“Bizarro” pensava ele “mas que importa, desde que me leve à cidade. Enquanto isso vou aproveitando a vista e observar estas terras de barro que por aqui existem.”.

Um som inconfundível, para ele, surgia nas suas costas. A hora que esperava, aproximava-se. Necessitava de alguma sorte para além da sua agilidade natural. Iniciou-se nesta vida aos doze anos, hoje já tinha quinze, considerado um veterano nestas andanças, por isso seria o mentor do seu irmão. Este seu irmão era o mais velho de entre os mais novos. Ao todo eram oito filhos da mesma mãe, sendo ele o mais velho de todos e o seguinte, o que o acompanhava, tinha onze. Para aprender o ofício, o seu irmão seguia-o para todo o lado, a observar tudo, tentando imitá-lo, mas ainda não era a hora de ele começar a agir, ainda tinha muito que aprender.
Estava quase na hora.

Já começava a ficar farto deste vai e vem do comboio, que parecia não terminar e levar a lado nenhum. A cidade parecia estar no mesmo sítio, à mesma distância.
“Boring!” comentou com os seus companheiros de viagem (um inglês, dois australianos e um português).
“That’s right mate!”
“Fucking stupid boring, I tell you.”
“What? I was already sleeping, what did you say?”
“I should be sleeping.”
“yeah. Ok.”
Levantou-se para abrir a janela e fazer com que algum ar penetrasse e pudesse cheirar melhor o exterior. Pelo ar que começava a entrar, a noite parecia que iria ser fria. O comboio parou mais uma vez.
“PUM!”, alguém tinha aberto a porta da sua carruagem. Da escuridão apareceu um pequeno vulto, magro de constituição e enguia de movimentos. Esticou os pequenos tentáculos de polvo e agarrou num saco que puxou imediatamente para a sua toca, a escuridão da noite, devorando-o rapidamente.
Nem dez segundos se tinham passado O comboio voltou à sua marcha, em sentido contrário, e só então se apercebeu que o saco era o seu, que ele tinha desaparecido e que aquilo tinha sido um roubo. Correu para a porta aberta e gritou:
“That’s my bag. That’s my bag. That’s my bag you mother fucking stupid Peruvian thief. If I catch you in my hands I don’t know what I’ll do to you, you fucking thief. That’s my bag. That’s my bag”

Tinha-lhe corrido bem o assalto, ninguém o apanhou, quase ninguém se apercebeu do que se tinha passado, o que lhe facilitou a fuga. Para mais a mochila estava mesmo ali sozinha e plantada no meio do corredor com uns grandes sinais luminosos a dizer: “Agarra-me se conseguires.”
“Foi um trabalho irresistível e limpo” dizia para o seu irmão mais novo que o acompanhava “mas ainda não acabou.”
Revistou apressadamente o saco à procura de valores. Metia as suas mãos no seu interior como uma faca quente atravessa manteiga e de lá tirava apenas alguns objectos.
“Queres umas botas novas? São um bocado grandes não?”
Da outra mão um objecto metálico saiu, era uma máquina fotográfica, tinha-lhe calhado a sorte grande. Já ia a pôr as mãos outra vez no saco quando ouviu alguém a aproximar-se rapidamente dele:
“Ladrão filho de uma grande puta. Se te apanho.”
“Está na hora de ir para casa mano. Rápido, corre.” desatou a correr pelos montes acima, protegido pela escuridão, por entre as casas de barro pouco iluminadas, seguro que nem ele ou o seu irmão seriam apanhados e com o dia ganho na sua mão esquerda.

Correu com cara de poucos amigos em direcção a um revisor, enquanto os passageiros da sua carruagem se iam apercebendo do que realmente tinha ocorrido.
O revisor olhava para o gigante norueguês com uma cara incrédula por não perceber a razão da sua fúria e muito menos a língua em que era expressa.
Já nada se podia fazer, o comboio estava em movimento e o ladrão já devia estar muito longe dali, seria impossível encontrá-lo.

Enquanto corria, já a poucos metros de casa, só pensava no sorriso na cara da sua mãe, com o seu mais pequeno irmão às costas, ao vê-lo com tamanha recompensa e no prato de comida que lhe seria dado pelo bom trabalho realizado.
Só agora, que pensava na comida, se apercebeu que as dores que o afligiram toda a tarde eram de fome. Tinha-se esquecido de comer e a barriga reclamava. Desde o pequeno almoço que não tocava em comida.

Encontrava-se na estação de Cusco rodeado por revisores, pessoal que trabalhava nas linhas de comboios e polícias. Fartavam de lhe dizer coisas que ele não compreendia, qualquer coisa como “Tem calma que tudo já se resolve”, mas realmente não sabia.
Sorte a sua que o seu ensonado companheiro português conseguia comunicar na língua deles e começou a traduzir-lhe o que lhe diziam.
Tinham encontrado o seu saco. O maquinista da última carruagem tinha visto o puto saltar para dentro do comboio e assim que percebeu o que fazia, correu atrás dele, mas não chegou a tempo de evitar que a mochila fosse revistada pelo puto, não sabendo se faltava alguma coisa.
“Estranho. Que estranho. Como conseguiram recuperar. Estranho”
Assim que lhe deram a mochila, despejou todo o seu conteúdo no chão, para verificar se faltava alguma coisa. Aparentemente só faltava a máquina fotográfica, mais nada. Dinheiro, carteira, cartão de crédito e mesmo o passaporte, estava tudo ali.
“Vai querer apresenta queixa na polícia senhor?”
“Claro que sim. Que tenho que fazer?”
“Siga-me por favor.”

Eram já dez da noite e a escuridão que se abateu sobre a cidade permanecia a mesma, mas sentida de maneiras diferentes. Enquanto o puto de quinze anos matava a fome esquecida, no prato de comida que a mãe lhe tinha preparado como recompensa, o turista norueguês tentava comunicar, com alguma esperança, com os polícias, que não sabiam esperanto, só castelhano, que ele nada compreendia, quase preferindo falar com as paredes.

quarta-feira, janeiro 14, 2004

Cerne em questão

Branco cerne
Onde encontro o meu indivíduo
E nação.

Nele,
O cerne branco,
De início,
Desfragmento e trituro
O ser-indivíduo,
Onde se gere a nação,
Para depois
Como um puzzle
Rescrever o indivíduo
Que serei eu,
Digo-o eu,
Que fará a história da nação,
Suponhamos a minha.

Tu Mário,
Tricolor dividido,
Serás vermelho, verde e amarelo,
Ou preferes o cerne branco
De cores preto, amarelo e vermelho?
Em que cerne
Escreverás a língua do teu indivíduo?
Serás um Pessoa
Ou um Goethe?
Será que isso interessa para alguma coisa?

No cerne,
Que dizem ser isto,
Eles se re(criam)escrevem,
Tal como os outros,
Artefactam os conceitos,
Tornados genuinamente
Impostos.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

Sete longos anos

Decorria o ano de 1996, chovia e era Inverno, aí nada de novo, mas uma época anormal para estar a visitar Veneza, apesar de ser das melhores, senão a melhor, para lá ir e realmente desfrutar da cidade, dos seus encantos, labirínticas ruas e canais, conhecer autóctones e estudantes – das muitas faculdades de línguas aí existentes – que são diluídos, senão mesmo apagados, pela grande massa amorfa de turistas que quase todo o ano conquistam a cidade.
Nessa grande cidade-canal, gasta pelos anos e pelo mar, rejuvenescida sob o movimento, aparentemente, perpétuo das águas da chuva e pela distorção fornecida por milhares de poçinhas de água que se podem encontrar nas suas ruelas, e que à noite funcionam como espelhos imperfeitos da sua beleza primordial, criando outras novas imagens, de igual beleza, competindo com a dos canais, onde pequenas embarcações flutuam sob ondulantes imagens surgidas ao som das remadas e pequenas vagas, por si produzidas, constantemente rechaçadas pelos muros que dão apoio às casas.

Esvaziadas ruas onde se podem descobrir subtis belezas que a cidade oferece e encontrar uma faceta menos conhecida, as das pessoas que os livros nunca referem, da noite, dos seus labirintos… a sua respiração. Mas, nesse Inverno sentia a cidade a respirar.
Estranhamente a sensação penetrava no interior das pessoas, provocando uma torpor dos sentidos, semelhantes a uma embriaguez agradável, alterando a percepção da cidade. Era como outros olhos a vissem.
No meio deste turvo olhar, apareceu um vulto, grande, bastante grande, de uma mulher, definitivamente de origens nórdicas, onde as silhuetas são exuberantes, demasiado exuberantes para que um latino compreendesse as subtilezas destes largos traços. Era Norueguesa, estudava enfermagem e queria trabalhar na Inglaterra, não sabia porquê senão que desde miúda gostaria de ir trabalhar no país dos gentlemans. Ele era demasiado muito novo, ainda não tinha entrado na universidade (só o faria no seguinte ano lectivo) e nem sequer sabia o que lá queria estudar.
Encontro entre pessoas desconhecidas, que percorriam os mesmos trilhos e com raízes linguísticas semelhantes. Para além disso, realizavam uma viagem pela vasta Europa, num simples bilhete de inter-rail, aparentemente insignificante, mas que permitia viagens maleáveis, provocando a remodelação de trajectos iniciais. O deles, tornaram-se iguais e complementares. Ela ainda foi com ele até há sua cidade natal, Hamburgo, onde conheceu os seus pais e alguns dos seus amigos e depois rumou mais para norte, para o seu país.
Depois? Depois, o inevitável. Separaram-se, embora mantendo o contacto através de cartas, evitando que as portas entre eles se fechassem por completo. Mas o tempo desgasta a memória e apaga dela as recordações que não são exercitadas, reflectido nas cartas que vão escasseando. Isso ocorreu, até que a Internet proporcionou o recrudescimento e o avivar dela, não só através de mails, como pelo encontro em sites de conversação on-line e a visualização directa.
Durante os anos que se passaram, viram-se muito poucas vezes. Ambos tinham pouco tempo disponível. Ela já trabalhava em Londres, solteira e sem intenções de alterar esse situação - o seu último namorado tinha sido um autêntico pesadelo e o que a safou foi ele ter ido para a Austrália trabalhar. Ele, que ainda estudava, tinha decidido ser advogado. O que não fazia parte dos seus planos imediatos, era ter um desgosto amoroso, pois a sua namorada de longa data tinha-o deixado quando ele já pensava em casar e ter filhos com ela. De um dia para o outro perdeu o norte. Não sabia o que fazer e sentia-se frágil perante o mundo lá de fora, já não possuía um esconderijo onde se podia proteger. Tinha que sair dali e encontrar a paz interior.

Chegou a Lima com sete horas de antecedência em relação ao avião dela e, mesmo sabendo que o aeroporto era pouco seguro, resolveu esperar por ela lá. Não havia de ser muito pior que os hauptbannhof na Alemanha e, principalmente, na sua cidade, onde toda a escumalha se junta : punks, drogados, vagabundos, prostitutas, travestis, transexuais, dealers e outros que nem sequer tinham nomes para os descrever. Era só ter alguma atenção e nada de mal ocorreria.
Tudo isto começou em Veneza, é verdade, mas esta última situação tinha partido de uma piada feita por ela num dos seus encontros semanais na net:
“Que tal irmos ao Peru juntos? Íamos um mês, conhecíamo-nos melhor e, também, curaríamos, juntamente, os nossos desgostos amorosos?”
“OK!” respondeu ele, sem se aperceber que na altura tinha realmente respondido afirmativo e que isto o levaria aonde estava agora.
Chegado o momento, apenas esperava poder reconhece-la e não começar com o pé errado estas suas férias, que eram um sonho que ainda não acreditava estar mesmo a realizar. Tudo tinha acontecido depressa demais. Decidiram quinze dias antes e marcaram tudo a correr, tal como as papeladas, material e vacinas necessárias. A única coisa segura que queriam fazer no Peru era o caminho Inka. Tudo o resto era um bónus que viria como acréscimo. Isto englobava não só outros lugares magníficos que pudessem ver, como também algo que pudesse acontecer entre os dois, mesmo não sabendo, no que a si dizia respeito, se ela seria a mesma rapariga de quem se tinha apaixonado aos dezoito anos.
Primeiro queria reconhece-la e só depois se interessaria por ver se alguma coisa de Veneza ainda respirava dentro dele.

“Sete longos anos” pensavam os dois, ainda separados por um controle de bagagens, passaportes e um monte de pessoas que se apinhavam para observar quem chegava. Ainda não se tinham reconhecido, mas por ambas as cabeças passava a mesma ideia:
“Sete longos anos… Que faço eu aqui, no aeroporto de Lima? Estou do outro lado do atlântico e procuro quem? Outro ou a mim?”
“Sete longos anos” parece terem os dois ouvido. Tanto tempo!!! Cada um reencontrou o corpo, no olhar do outro.

“Hello!”
“Hey! How was your trip?”

domingo, janeiro 11, 2004

Mais uma cerveja

“Mais uma cerveja seria bom.” dizia ele com os seus olhos a brilhar.
“Não sejas parvo. Daqui a nada vais ao gregório e eu é que tenho de te aturar. Se ao menos hoje dormisses na casa dos teus pais. É assim que me tratas. Quando dizes que passas a noite comigo, esqueces-te de referir que apenas lá vais para ressacar.” disse ela zangada e com grande vontade de o esbofetear, mesmo sabendo que isso lhe seria indiferente.
Quis sair dali, mudar de face, mudar de namorado, de terra, de país, de emprego, de tudo. A vida que tinha escolhido para si não era aquela que queria, apenas a que lhe tinha sido possível, na verdade nunca realmente teve hipóteses de escolher. Das poucas coisas que tinha escolhido, apesar de não ser muito correcto chamar escolha à paixão, saiu-lhe um bastardo insensível, com gosto para a bebida e a delinquência.
“Até parece! Eu gosto muito de ti mas sabes bem que os meus pais não gostam que eu beba e esta é das poucas oportunidades que tenho para me divertir.” disse ele com o maior sorriso do mundo, aquele que a seduziu em cinco segundos, ao mesmo tempo que metia a sua mão sobre um dos seus sítios predilectos.
“Estás a dizer que não te divertes comigo sóbrio?” disse ela, tentando fazer um ar sério, pois realmente não acreditava no que dizia. Um namoro sem zangas não tem piada nenhuma e para mais era muito aborrecido. Seguramente terminaria essa relação mais cedo do que em uma onde houvesse constantes brigas, isso apenas fortalecia a relação. Essa era a convicção dela.
“Bebe um copo comigo. Porque nunca bebes um copo comigo?”
“Não desvies a conversa!” desfazendo-se num sorriso que estragava por completo a intenção da sua frase. “o bastardo sabe bem como me dar a volta. Se ele não fosse tão bom na cama e não me mimasse tanto com presentes, já lhe teria dado com os pés.” pensou ela. Entretanto já ele lhe assaltava o pescoço com um beijo, provocando-lhe um arrepio transformado em pele de galinha e furtivamente aproximava as suas mãos aos seus seios oponentes.
“Sabes que não gosto de beber, nem de te ver bêbado. Começas logo a mirar outras e eu fico cheio de ciúmes. E já sabes como eu sou quando fico com ciúmes.”
“Mais sexy!”
“Pára de me bajular, não me consegues dar a volta com essas tuas falinhas mansas.”
“Só há três anos para cá. Desde o dia que te fisguei na praça e nunca mais consegui desgrudar de ti.” dizia ele com um sorriso de triunfo e gozo.
“Pois! Senão fosse eu, era a minha amiga. A minha melhor amiga, eu bem me lembro.”
“Isso era apenas para ficar mais perto de ti. Se lhe desse um beijo pensaria sempre em ti. Vem cá e dá-me um, há já muito que não sinto os teus lábios.”
“OK, só um, não bebes mais e vamos já para casa.”
“OK!” disse ele a mentir com todos os seus dentes.
Ele deu o beijo, pediu mais uma cerveja e voltou, literalmente, nos braços dela, quase a desfalecer sob o seu peso. Despiu-o e ainda demorou a adormecer, não só por causa dos roncos etílicos dele, mas também a pensar no que tinha falhado durante a sua curta vida, que apesar de não gostar dela, lhe tinha tanto apego. Virou-se para ele, olhou bem para as suas grandes costas musculadas, passou a mão pelas suas vértebras, provocando um leve calafrio nele, rapidamente esquecido como um sonho, continuando a sua sinfonia roncónica.
Ela agarrou-se a ele como se ele fosse a pedra que a ancorava a este seu mundo.

sábado, janeiro 10, 2004

Vida inútil

Recebeu mal a notícia, não só porque se encontrava muito cansado devido a uma doença enviada pelos Deuses, como pela notícia em si.
Afinal tudo tinha começado com uma trovoada, habitual na época das chuvas, onde um, desculpem, dois acontecimentos inesperados transformaram a cidade dos Deuses em uma cidade amaldiçoada.
Em apenas setenta e cinco anos foi tudo construído, desde a cidade dos Deuses, aos caminhos que iam ter a ela e tal como as cidades de suporte, tanto para a cidade como para os peregrinos que para lá iam.
Ele tinha dado no duro, dado todas as forças que tinha até ter sido atacado pela calada por uma maldita doença, tentado realizar os sonhos de um reino poderoso e supremo – tanto em força, beleza, superioridade e extensão - e a cidade era o apogeu dessa civilização, o orgulho dos Deuses seus Reis e do seu povo.
Descansava nessa cidade magnificamente construída no topo de uma montanha de pedra, a uma altura bastante grande, pois situava-se acima das nuvens, rodeada por montanhas maiores, apenas separadas por grandes vales onde rios puros corriam de água sagrada.
Tinha assistido a tudo, pois adoeceu pouco antes de tudo ocorrer. Numa noite de trovoada, um raio abateu-se sobre o templo do sol, abrindo uma cissura na pedra dos sacrifícios, o sítio mais sagrado da cidade. Para além disso, o grande estrondo provocou o desalinhamento do muro de um templo ainda em construção, finamente trabalhado para durar milhares de anos. Tudo isto foi visto, pelos sacerdotes da cidade, como sinais claros de desaprovação dos Deuses perante a localização da cidade.
Fora estes acontecimentos inusuais, já há algum tempo que uma doença desconhecida se abatia sobre a população das cidades satélites e finalmente chegava à cidade dos Deuses. Ele tinha sido um deles e um dos poucos que a ela tinha sobrevivido, os Deuses o tinham poupado por razões desconhecidas. Também isto era interpretado como um castigo dos Deuses, que a infligia por considerar os seus súbitos pecadores.
A decisão estava tomada, toda a gente devia abandonar a cidade o mais depressa possível, esquecer que ela alguma fez existiu e nunca mais falar sobre ele, pois os Deuses castigariam essas pessoas com a misteriosa doença.

Não gostava de partir, não só por ser uma cidade linda mas principalmente por a ter construída com as suas próprias mãos. Gostava que o deixassem ali a morrer, naquele leito no meio daquela “sua” cidade, mas não lhe concederam esse desejo e transportaram-no juntamente com o resto da população.

Anos mais tarde, muito longe da sua cidade perdida e revista apenas em sonhos, onde nunca mais tinha voltada, nem nenhuma outra pessoa do seu povo, falou aos seus netos sobre ela, mas eles não acreditaram porque não constava em nenhum registo e nenhum Rei ou Sacerdote falava sobre essa cidade amaldiçoada.
Isso fê-lo morrer de desgosto, como podia uma cidade que ele tinha ajudado a construir e quase morrido por ela, fosse tão facilmente esquecida.
O seu nome foi-se evaporando juntamente com as memórias que iam perecendo, não ficando nenhum registo e só muitos séculos mais tarde algum ser humano pisaria outra vez aquela cidade dos seus sonhos, hoje com um outro nome, mas tão magnifica como a tinha deixado.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Dona Xica

Mais uma vez tinha-o retirado inutilmente do bolso. Nada.
“Merda!” dizia ela.
D. Xica podia ser considerada uma pessoa nervosa, doente da cabeça e até uma neurótica obsessiva-compulsiva se não a conhecessem.
Brandia aos céus sempre que o acto que tinha realizada se tornava igualmente inútil, pois deparava-se com a inutilidade de um objecto que trazia no bolso, agora compulsivamente.
Encontrava-se por terras fracamente habitadas, onde a mão humana mal se notava, apenas alguns laivos de desenvolvimento fornecidos por postes de electricidade visionados na vasta paisagem verde, que na realidade não traziam nada por terem sido cortados numa avalanche há três anos atrás, mas mesmo assim procurava avidamente sinais de civilização através do objecto que trazia no bolso, demonstráveis pela aparição de pauzinhos de rede.
Há cerca de dois dias que esse maldito objecto viciante, de nome telemóvel, não captava nenhum pau de rede, não podendo receber ou enviar mensagens.
Isso chateava-a muito, não só o facto de não ter rede e dar uma utilidade nula aquele objecto que trazia no bolso, mas principalmente por se ter tornado completamente dependente, não conseguindo abstrair-se dele por uns míseros três dias e apreciar as férias de sonho que estava a realizar.
Mais uma vez levou a mão compulsiva ao obsessivo bolso, onde nada haveria de encontrar e uma vez mais gritar a palavra merda, maldizia do telemóvel antiquado que tinha resolvido trazer consigo.
Juntamente com ele viajava um amigo, algo chato mas o único que tinha aceite o desafio, que constantemente lhe pedia o telemóvel para enviar mensagens, pois tinha resolvido não o trazer.
“Assim estarei mais perto das pessoas e da realidade”, dizia ele para ela, o que a aborrecia muito, mas nada dizia, poderia ele ficar magoado e deixa-la sozinha naquele fim de mundo sem um pauzinho de civilização.
Pela terceira vez em menos de um minuto olhou para o ecrã sem rede que apenas indicava as horas do sítio onde se encontrava, 8:36 “em Portugal devem ser uma 13h36. Ele deve estar em casa a almoçar” pensava ela.
Desligou o telemóvel farta da sua inutilidade, com a certeza de que o ponho agora no saco e de lá só o tiraria dentro de três dias.
“Acabei de enviar uma mensagem!” disse uma pessoa ao seu lado.
“A sério?”, sorria D. Xica, já com o telemóvel na mão e com o dedo sobre o botão que ligava o dito.

quinta-feira, janeiro 08, 2004

Edison mas não o inventor

Não conseguia parar de olhar para a televisão. Era o terceiro dia consecutivo em que isso acontecia. Sempre que podia, ia ao café mais próximo, o único que tinha televisão, para dar uma espreitadela no que estava a acontecer e saber as últimas novidades sobre a situação.
Tinha doze anos e na altura o Sendero Luminoso e outro grupo extremista circulavam livremente pelo seu país com bombas, tiros, atentados, mortes e quebras de electricidade. Ninguém realmente se preocupava com isso, era como se de um hábito fosse, com o qual tinha nascido, não os haver é que era preocupante, algo de terrível deveria estar a ser preparado.
Terrível foi também o espectáculo que ocupou a televisão estatal durante duas semanas, um espectáculo chocante que nunca mais saiu da sua memória.
Numa das mais lotadas prisões do país, tinha havido uma revolta de reclusos que terminou com a tomada da prisão e estes exigiam helicópteros, dinheiro, a queda do governo, o apoio da população – do qual já diziam ter – e a liberdade. Como retaliação ao não cumprimento das exigências, por parte do governo, os reclusos foram matando guardas prisionais ao seu belo prazer e gosto. Isto tudo em directo na televisão, onde ele pode ver pela primeira vez pessoas a serem mortas de formas atrozes como espancamento, enforcamento, queimadas vivas, esfoliadas aos poucos e desmembradas, tal como mortes rápidas com tiros na cabeça, sendo depois lançados para fora dos limites da prisão. Tudo em directo na televisão.
Hoje, com vinte e nove anos, ainda não conseguiu visionar um filme de guerra ou de horror que tenha sido tão real ou mais horrível que aquilo que pode ver com apenas doze, tal como quase toda a gente da sua idade do seu país que tinha a possibilidade de ver televisão.
Tudo terminou como devia terminar na altura, com um assalto por parte das forças especiais do governo, matando tudo que lhes apareceu à frente, civis ou reclusos, uma autêntica chacina com que ninguém se importou, como ninguém na altura se importava com eles, os mortos, excepto com a sua própria morte.
Hoje recordava uma vez mais esta história, perante turistas que faziam com ele o caminho Inca, que gostava que permanecesse nos confins mais profundos da sua memória mas que nunca lá conseguiam chegar porque eram constantemente repescados, tanto pelos seus sonhos como pelos turistas que gostavam de ouvir este tipo de histórias. Enquanto contava esta história, conseguia observar uma certa luzinha que se acendia nos olhos destes estrangeiros que visitavam o seu país, e não era nem inveja ou arrogância de nunca terem vivido esses tempos difíceis, inexistentes nos seus ricos país, mas o interesse de ouvirem histórias reais vindas de pessoas banais, como eles, de outros países, com outras vivências e experiências de vida.
Tinha nome de um inventor, mas apenas usava os utensílios por si descobertos, carregava no botão e ela acendia-se. Edison de seu nome, era um guia turístico do caminho Inca há três anos. Gostava da experiência de conviver com estrangeiros mas acima de tudo, porque o seu país era pobre, proporcionava-lhe um nível de vida superior aos seus demais compatriotas. Isso era por demais evidente na roupa que vestia, nas botas que calçava, ao contrário do portadores que apenas calçavam umas sandálias e acima de tudo falava fluentemente inglês, o que lhe tinha sido proporcionado por aulas que frequentou, a vontade de aprender e o contacto permanente com estrangeiros, só possível pelo tempo fornecido pelo bom dinheiro que recebia.
Isto proporcionava-lhe um sentimento de mestiçagem, pois não era aceite como um verdadeiro descendente dos Incas, tal como os portadores, nem ser visto como um gringo, movendo-se entre a linha de contacto entre as duas personagens, sem puder ancorar em nenhuma delas.
Ao recordar a história da televisão e dos dias que se passaram a ver o desenrolar dos acontecimentos, sentia-se bem entre os gringos que o escutavam como se ele tivesse sido adoptado por eles.

quarta-feira, janeiro 07, 2004

Bófia

Já tinha fumado metade da provisão de tabaco que tinha trazido consigo, agora só sobravam dois maços. Não pensava que durasse para a viagem toda, não era esse o objectivo, mas o problema era que apenas tinha passado metade do seu primeiro dia desta sua caminhada. Começava a preocupar-se com a falta de cigarros, como é conseguiria fornecer-se com mais?
Parou de caminhar e aproveitou para fumar e descansar, ainda faltava uns quilómetros para o primeiro acampamento. Sentou-se numa enorme pedra nua, pintada com cores cinzentas e verde musgo, tirou da sua mochila um maço de tabaco imaculado, cheirou-o, antes de abrir e num ápice já o tinha aberto, tirado um cigarro que já se encontrava nos seus lábios a fumegar. Apenas deu início a um ritual usual em si, o de abrir um maço e pouco depois o deitar no lixo, vazio.
“Era melhor perguntar ao guia?”
“Acho que sim, ele deve saber se pelo caminho existe alguém que venda cigarros.”
“OK lad!”
Depressa despachou o resto do cigarro e pelo sim e não, acendeu logo outro para a caminhada que se avizinhava.

Estava a três mil metros de altitude e mesmo sendo um fumador compulsivo, não sentia nenhuma sensação de falta de ar. Certamente a razão para isso terá sido a sua juventude saudável, sem cigarros ou álcool, um promissor futuro como avançado no seu clube de coração, destruído aos dezoito anos por uma grave lesão no tornozelo e a morte do seu irmão mais velho num acidente de viação, onde um condutor bêbado embateu no carro onde ia o irmão, depois de ter passado por um sinal vermelho, provocando a sua imediata morte.
Num ápice da sua vida via dois sonhos destruídos, ela depois, a vida, tomou um rumo inesperado. Passou do relvado para as bancadas, onde seguia um bando de hooligans, uns bons camaradas de copos e charros. Isso durou um par de anos, onde para além disso experimentou lutas com policias, outras drogas mais pesadas, a falta de dinheiro, por não ter emprego e conversas estúpidas sobre futebol e racismo.
Já não suportava os seus companheiros de borga, quase que não lhes falava e algumas vezes apetecia-lhe esmurra-los até que os seus pequenos cérebros explodissem cá para fora.
Num dia banal como os outros, passado a fazer o mesmo de sempre, em casa do pai a ver televisão, o pai disse-lhe uma frase que ele ouviu, o que já não acontecia desde a morte do seu irmão:
“Porque não te alistas na tropa? Ao menos lá ganhas uns troques, dizem que são uns bons companheiros de borga e se quiseres podes aprender lá outro ofício. Que achas disso?”
“Isso são tretas pai, que sabes tu da vida? Passas a vida a trabalhar ou à frente da televisão a beber cerveja. Que sabes tu do que se passa no mundo de hoje? E deves pensar que qualquer um, quando lhe apetece, vai para a tropa, não?”
“Apenas te disse isto porque um velho amigo meu apareceu no outro dia cá em casa. Não estavas cá porque tinhas ido com os estúpidos dos teus amigos ver a bola ou bater num qualquer velhote. Bem, isso não interessa, tu sabes o que fazes tudo o santo dia, sempre a mesma merda. Mas não interessa. Bem, esse meu amigo, que já não via há anos, é sargento no exercito, e disse-me que se eu quisesse, e é claro, se tu quisesses, te metia lá dentro e assim já não me tinha que preocupar contigo. Disse-me mais, que lá tratam bem das pessoas e se tu gostavas da borga, a vida no exercito é um dos melhores sítios para isso.”
“Esse teu amigo deve ser imaginário. The army sucks!”
Saiu de casa com um estrondo, o da porta a bater. Queria pensar sobre o assunto, mas não queria que o pai pensasse que tivesse razão. Os pais nunca têm razão. Muita coisa estava em jogo, o seu estilo de vida, tinha que deixar os seus amigos de agora, para sempre, tinha que começar a atinar e provavelmente acordar antes do meio dia e tinha que ter armas na mão. Não gostava de armas, apenas de navalhas que o ajudavam a comer maçãs – detestava a sua casca. Fora isso, era mesmo um emprego deste género que tinha em mente.
No dia seguinte partia para um qualquer quartel para dar início há sua carreira como militar, algo que nunca tinha imaginado como um futuro seu, era algo que guardava para outras pessoas. Os oito anos que por lá passou não desfraldaram as expectativas, as bebedeiras eram regulares, cada uma melhor que a outra e sempre com muitas histórias por contar, mas nunca realmente se adaptou aos exercícios de campo e a ter uma metralhadora na mão. Com vinte e nove anos, era a idade perfeita para mudar e desta vez para algo definitivo.
Como tinha sido soldado, tinha vantagem sobre as outras pessoas, os civis, se quisesse entrar na polícia, o que lhe garantia uma vida tranquila e bem remunerada. Poucas foram as suas hesitações e em pouco tempo se tornou num polícia em Birmingham, sem nenhuma arma ao tiracolo, o que lhe agradava bastante.

Deste seu passado apenas restou a compulsão por tabaco, o gosto pela bebida, alguma preparação física e algum fanatismo pelo futebol. Hoje, a três mil e poucos metros de altitude, a um dia do pior dia da caminhada, onde tinha que passar por dois cumes, um a quatro mil e duzentos metros e outro a três mil e novecentos metros de altitude, agradecia ao seu passado como futebolista e militar por lhe proporcionarem com 36 anos e uma vida de fumador inveterado, a possibilidade de fazer estas ultimas férias em sítios exóticos, antes de assentar e ter filhos.

Apagou o cigarro e apressou-se a apanhar o guia do seu grupo, pois o seu tabaco não ia durar mais que aquele dia, que já se ponha e nem sequer ponha obstáculos a ter que fumar aqueles cigarros peruanos sem filtro, muito fortes e ásperos, que não podiam ser apreciados mas sempre enganavam o vício.

terça-feira, janeiro 06, 2004

Uma polaca no meio, sozinha

Estudou línguas e culturas Ibéricas e Sul Americanas na sua cidade natal. Mais tarde viria a casar com o seu namorado de longa data aos vinte e quatro anos. Ele, actualmente, trabalhava na embaixada polaca em Washington.
Terminado o curso, sabia que não queria ser uma simples professora num qualquer liceu polaco, a dar aulas de uma língua pela qual quase ninguém tinha interesse, pelo menos no seu país. Inicialmente tentou tornar-se assistente de alguns professores da sua universidade, mas devido aos cortes orçamentais foi-lhe vedado essa possibilidade.
Só lhe restava uma última hipóteses, em que se sentisse realizada, fazer um doutoramento sobre a cultura de um dos países, de um dos quais tinha estudado durante o seu curso. Conseguir uma bolsa para essa finalidade não era difícil, pelo menos não nos últimos anos, pois como o seu país tinha alguns acordos com a comunidade europeia, na qual deveria entrar dentro de muito pouco tempo, havia já alguns protocolos que forneciam bolsas a pessoas do seu país interessadas em doutoramentos.
Dentro dos países que faziam “parte” do seu curso, já tinha definido há algum tempo que se quedaria por um da América do Sul, mas ainda não tinha escolhido ao certo qual. Gostaria que fosse o país de um dos seus autores preferidos, Mario Vargas Llosa do Peru, Gabriel Garcia Marques que era Colombiano, Paulo Coelho que vinha do país do Samba e o falecido Jorge Luis Borges, uma grande perca para a Argentina.
Tanto a Colómbia, pela sua instabilidade económica e quartéis da droga, como a argentina, pela recessão económica e pela morte recente de Jorge Luis Borges, estavam na cauda das suas preferencias.
Depois disto fez diversos contactos pelos países que tinha escolhido e nenhum, excepto o Peru, lhe deu garantias de ajudas académicas e logísticas para realizar a sua tese de doutoramento. As pessoas no Peru que lhe responderam, pareciam muito interessadas que alguém estrangeiro estudasse a sua cultura e a espalhasse pelo mundo. Isto convenceu-a que o Peru era o país escolhido e agora só faltava decidir o que é que queria verdadeiramente estudar.
Para isso seria uma boa ideia primeiro visitar o país, falar directamente com as pessoas e depois decidir.
Infelizmente não podia passar esse período conjuntamente com o seu marido, pois este não podia pedir tempo de férias na mesma altura, tendo por isso que passar um mês sozinha num país quase desconhecido, apenas por intermédio dos livros, mas como ela sabia que os livros são livros, sempre muito diferentes do mundo real.
Um mês parece pequeno para alguns, para outros é como se fosse uma eternidade e para ela este último foi o caso dela. Ao decidir ir ao Peru, sozinha pelo facto de o marido não a puder acompanhar, aproveitou para visitar alguns sítios que tinha lido referenciados em muitos livros sobre o país, o que lhe proporcionou longas viagens solitárias, com quase ninguém com quem falar, sem ninguém para a aquecer durante a noite, desgastantes preocupações com a bagagens, valores, como viajar e onde dormir. Para além disso o país que descobriu, alheio à sua capital, era muito pobre, as pessoas queriam sempre algum dinheiro em troca de favores que lhe prestavam, sem pedir permissão para os realizar, havia sempre alguém que lhe avisava que devia ter muito cuidado e que não devia confiar em ninguém. O Peru profundo que encontrou foi um choque, nada tinha haver com o que tinha lido, mas isso não quis dizer que não tivesse a apreciar, muito pelo contrário, muitas vezes o que nos surpreende mais, pela positiva, são as coisas inesperadas.
O seu percurso no Peru não foi muito diferente ao de muitos turistas que para lá vão. Aterrou em Lima, onde teve que fazer alguns contactos para o seu possível doutoramento, uma cidade muito cinzenta que convida as pessoas a quererem sair dali, a ela também, onde tentou ficar o mínimo de tempo possível. No seu trajecto passou por cidades como Nasca, Arequipa, Colca, Puno, Cusco e Machu Picchú, onde passou de uma forma muito rápida, apenas para ter algumas ideias sobre o Peru, para depois regressar a Lima para concluir alguns detalhes importantes para a sua possível tese.
Pelo meio, felizmente, fez alguns contactos com outros turistas, com os quais tinha apenas a sua companhia de uma forma fugaz. Houve um casal de portugueses que lhe causou um afecto particular. Isso deveu-se a terem-se encontrado em todos os sítios pelos quais passou, sem terem combinado nada. Tudo começou cedo, em plena Nasca, uma autêntica aldeia onde os mesmos carros não paravam reaparecer e de buzinar. Um deles a convidou para jantarem juntos, vistos terem reparado que ela estava sozinho e isso deu azo a que ficassem até à hora que tinha de apanhar o autocarro, por volta das 23h, a beber cerveja e a conversar banalidades, o que era sempre bom quando se passava dias inteiros sem falar com alguém. Depois disto a coincidência tomou conta dos seus rumos e fê-los reencontrarem-se em Arequipa, no meio de uma greve que passava pela praça de armas, para depois esbarrarem-se no meio do Colca, entre muitos outros turistas empoleirados a verem os condores passarem. A última vez que os viu, apenas a um deles, tinha acabado de regressar de Machu Picchú, e passeava pelas ruas de Cusco a fazer tempo, pois partia nesse mesmo dia para Lima. Decidiram sentar-se num café e pôr a conversa em dia, pois eles ainda não tinham ido a Machu Picchú e iam fazer o percurso mais longo, o de quatro dias. Despediram-se no fim com a certeza que se viriam, seguramente, em Lima ou na velhinha Europa.

Agora, no aeroporto internacional de Lima, estava ela à espera do seu avião para Washington e do seu casal de amigos portugueses que deviam estar mesmo a aparecer para se despedirem dela… assim desejava ela, ali sozinha no meio de desconhecidos.

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Casa de banho

Usar a casa de banho de certos cafés, que pela sua raridade em certos lugares do mundo, são sítios de eleição por terem um serviço higiénico digno de uma rabo aristocrático, hospedado normalmente no hotel de muitas estrelas, localizado mesmo ao seu lado.

Relaxado a beber uma caneca de café aguado, ouvindo uma tranquila música espanhola, com os olhos pregados na janela à minha direita, observava o tempo cinzento que estava lá fora, tal como um vendedor de cavacos que não desistia, deliciando-me com os confortos que este pequeno café oferecia, invulgar para as gentes daquela região.
Alguém me incómoda e pergunta se quero mais alguma coisa, digo que não, apenas necessito de ir ao “baño”, onde é? Alegro-me com a resposta e dirijo-me imediatamente para ele, algo decente, limpo e perfumado me esperava ao contrário daquela coisa com que me tinha deparado no dia anterior.
Difícil de descrever, tal como o restaurante/bar-alterne em que a encontrei. De dia era restaurante, apenas para o almoço, as suas cores verde alface realçavam-se nos meus olhos, talvez foi isso que me atraiu a ele, a meio das paredes poderia visualizar-se umas pequenas flores estampadas, muito foleiras, e ligeiramente mais acima uma serpentina de luzes que vagueava por toda a sala. Mas não era só isto que dava uma certa elegância ao sítio, havia também, precisamente por cima da mesa onde almoçava, uma daquelas bolas de cristais que proporcionavam aqueles efeitos magníficos nos anos oitenta. Por trás de uma esquina, a um nível superior ao do chão, encontrava-se uma pequena plataforma, perfeitamente equipa com uma mesa de mistura e um leitor de cds. Há hora a que fui, a do almoço, ninguém lá estava. Apenas imaginei como seria à noite, confirmado com uma visita relâmpago que por lá fiz nesse mesmo dia há noite.
Ao fundo da sala, ao seu lado direito, encontrava-se uma pequena porta que ia dar à cozinha e um pouco mais à sua direita uma escada. Essa escada era pequena, feita em madeira já podre, ia dar a pequenos cubículos ainda repletos de um odor de sexo fácil, rápido e pago. Mas não era apenas aí que se pressentia esse odor. À esquerda da cozinha havia um pequeno corredor, escuro por não possuir janelas nem luz eléctrica, que ia dar a três pequenos compartimentos, que pareciam terem sido escavado numa pedra. Eles eram as casa de banho daquele sítio híbrido, um dos buracos, supostamente, era a casa de banho das mulheres, noutro havia um urinol comunitário e no que restava havia um exíguo lavatório para lavar as mãos ou para quem preferisse, vomitar lá dentro. Era aí que também se podia encontrava o odor a sexo fácil, rápido e pago, mas misturado com o cheiro a fluídos vários, tal como o de merda, vómito e urina diluída em cusqueña ou Pisco sauer. Só mesmo alguém desesperado, com muito pouco dinheiro e totalmente embebido em álcool poderia conseguir praticar sexo naquele sítio, sem se sentir imediatamente nauseado. Passei por lá e voltei para trás sem me aliviar, voltei para a minha mesa, devorei rapidamente a comida e saí apressado à procura de uma verdadeira casa de banho.

Puxo as calças para cima, também o cinto com os valores, para a minha cintura e aperto o laço das calças de alpaca que levo vestido, cheias de cores, tal como a de um palhaço. Lavo as mãos e os dentes, enxaguo as mão na tolha limpa que por ali se encontrava.
Saí da casa de banho esvaziado e com a felicidade que apenas pode ser proporcionado por um café estiloso no meio do Peru, localizado mesmo ao lado de um hotel de muitas estrelas, equipado com uma casa de banho decente, limpa e perfumada.

dois poemas

"negro perro"

Perdido na calçada,
Frio e com a língua de fora,
Um rasgo vermelho,
Imergia.

Era veneno,
Não o sabia.
Era preto,
Como a morte.

Maldito,
Veneno-pessoa,
Uno no acto,
Mesma substância material.

O sol brilhou,
Nenhum ponto negro restou,
Nalguma sarjeta,
Se despojou.

Um pequeno pedaço,
Restou,
Outro cão ficou,
De outra cor,
Frio e com a língua de fora,
E o mesmo,
Rasgo vermelho.

"Veneno que atraiçoou"
Nenhum melhor amigo,
Se quedou!

Sozinho na sarjeta,
Desolada carcaça,
Bestialidade humana,
Incorporada.


"Buzinadela Latina"

Esfera oval,
Isto é: achatada nos pólos,
Sempre algo a mexer.

Rasgado por sons,
De noite e de dia,
Faça luz ou escuridão,
Rasgado, simplesmente e constantemente,
De sons.

Cravado no cérebro,
Como um gene hereditário,
Omnipresente,
Até nos sonhos!

domingo, janeiro 04, 2004

Cité d'or

Ia e vinha constantemente, era-lhe impossível estar quieto, qualquer que fosse a sua posição, sentado, deitado ou em pé. Ainda tentou dormir, mas estava sempre a abrir os olhos para ver o que se passava à sua volta.
Estava demasiado ansioso para se poder controlar, estava prestes a realizar um dos sonhos de infância. Tudo começou quando era pequeno e passava serões e serões a ver desenhos animados. Um deles era sobre um trio de miúdos, passado na América latina, que procuravam os mistérios deixados pela cultura Inca. Era uma aventura que tornou as três personagens principais amigas, pois elas não se conheciam no início dessa aventura. Havia um rapaz, meio tolo, que era um indígena da região, que tinha como conhecida uma rapariga, sem nenhum traço de mestiçagem, que desde cedo soube que estava destinada a actos grandiosos, por isso carregava metade de um medalhão ao seu peito, dado pelo seu pai. Quando lhe deu esse medalhão apenas lhe disse: “Um dia irás encontrar a outra metade e quem o possuir será o teu irmão.” A outra personagem era um rapaz, o líder do grupo, nascido em frança, que tinha partido com a sua mãe para a América latina, para realizar um instinto que desde cedo lhe surgiu no meio dos sonhos, onde passeava por uma cidade toda feita de ouro. Ele, como é óbvio, descobriu que era o irmão da rapariga, pois também transportava ao seu peito metade de um medalhão de ouro, a outra face da do dela. A história prosseguia em torno da procura da “cité d’or”, a cidade mágica e suprema dos Incas, toda ela em ouro.
Passava os dias, quando era pequeno, a sonhar com estas aventuras, como devia ser maravilhoso encontrar a famosa cidade de ouro, viajar no grande Condor de ouro, andar a fugir dos “maus” conquistadores, espanhóis e participar numa verdadeira aventura, com índios verdadeiros. Hoje, que já tinha vinte e seis anos, não acreditava mais nisso, mas sentia uma vontade quase que compulsiva de ter que visitar a última grande cidade Inca a ser descoberta, já no século XX, decorria o ano de 1911, que ficou conhecida por Machu Picchú. Ninguém sabia porque ela existia, já na altura dos espanhóis estava abandonada e mais ninguém percorria os trilhos pelos quais ansiava caminhar. O mistério sobre a cidade era denso.

“Passageiros com destino a Lima, Peru, pela companhia Ibéria, é favor de embarcarem”, dizia a senhora do altifalante. Foi o primeiro a entrar no avião, mas como não conseguia estar parado, tomou um xanax assim que se sentou, desejando que apenas acordasse em Lima. Depois, tinha que apanhar um avião para Cusco, que era um “ratito”, descansaria um dia nesta cidade situada a três mil e duzentos metros de altitude, para se ambientar à altitude e depois no dia seguinte rumava directo para o seu sonho.
Rumava para um sonho, mas mesmo assim sentia algum receio, que os seus vinte e seis anos foram criando paralelamente ao desenvolvimento da consciência de haver riscos na vida. Isso causava-lhe problemas porque começava a pensar nos possíveis problemas de habituação à altitude, à rarefacção de oxigénio e associado ao esforço físico, poderiam ser demais para ele. Para além disso, era uma fumador irregular que não praticava nenhum desporto. Assustava-o a ideia de não conseguir terminar o trilho e ter que voltar para trás, humilhado e arrasado.
Ultrapassou esses receios com uma decisão irracional, que não olhava para trás e suas consequências e ignorou por completo a existência deles. Para além disso, falou com muita gente que tinha feito o caminho Inca, que apesar de difícil nenhum deles desistiu, nem tinham visto alguém a desistir. For a isso, não iria fazer a caminhada sozinho. À sua espera, em Cusco, estavam dois amigos, de propósito, para que realizassem o seu sonho em conjunto.
“Não há de ser nada. À confiança!” dizia ele repetidamente para ele próprio ainda dentro do avião, antes de arrancar.
O sono ainda demorou uns cinquenta minutos a aparecer, ainda viu o avião sobrevoar toda península Ibérica e entrar pelo atlântico a dentro, mas progressivamente os seus olhos foram sendo tapados pelas pálpebras que se juntavam, entrando directamente no seu sonho, onde era o quarto amigo do desenho animado e passava pelas mesmas aventuras que tinha visionado naqueles longos serões do passado, especado em frente da televisão a absorver “A maravilhosa cidade de ouro”.

sexta-feira, janeiro 02, 2004

Cola-sapatos

Procurava o seu próximo cliente, sentado em cima da sua caixa de engraxar sapatos. Levantou-se, pegou na sua caixa de madeira, pô-la no ombro direito e com uma escova preta usada na mão esquerda abordou a primeira pessoa que passou:
“Por um sol engraxo-te os sapatos. Não há problema, a graxa que uso é natural e não estraga o sapato. Está mesmo a precisar de uma escovadela. É só cinquenta cêntimos. Vá lá, é para comer!”
Sabia que os que davam maior gorjeta eram os estrangeiros e mesmo que poucos aceitassem a proposta, um por dia valia por todos os peruanos que fizesse num bom dia. Não falava nada de inglês ou outra língua para além de espanhol e um pouco de yamara, o que dificultava um pouco a comunicação, mas lá se fazia perceber.
Normalmente os estrangeiros tinham calçado umas pesadas botas, repletas de lama e pó e sem vergonha de andarem nesse estado. Não percebia isso, como é que estes estrangeiros, mais ricos que eles, mais poderosos que eles e supostamente culturalmente superiores, podiam não ter cuidado nenhum com a sua aparência, o primeiro indício de riqueza! Muitas vezes se perguntava como era isso possível?
Entre os peruanos, os ricos preocupavam-se muito com a sua aparência, sendo os seus maiores fregueses, o que lhe proporcionava uns sóis para pagar as suas refeições e poupar algum dinheiro.
Para além deste trabalho honesto, ele também usava alguns estratagemas para puder sacar uns cobres aos ingénuos turistas que tinham a mania da filantropia. Metia conversa através da pergunta típica: “quer engraxar sapato?”, o que invariavelmente era respondido com um não, mas não desistia, sentava-se na sua frente a mostrar os pontos fracos dos seus sapatos ou simplesmente olhava especado para eles, sem nada dizendo – o que ocorria na maioria das vezes. Este desconforto que ele provocava nos turistas levava a duas coisas opostas: iam-se embora ou começavam a falar com ele. Quando escolhiam este ultimo caminho, perguntavam sempre as mesmas perguntas:
Como se chamava; onde vivia; se gostava de Puno e do Peru; o que havia para visitar na sua cidade; a sua idade e algumas vezes coisas sobre a sua família e amigos, mas nunca saiam disto. Como já estava farto de dizer sempre a mesma coisa, inventava nomes, famílias, coisas para ver, etc, dependia da sua disposição e imaginação.
Hoje tinha decidido que seria Juan Carlos, um estudante de quinze anos, que falava castelhano e yamara e o trabalho de engraxador era apenas um part-time para ajudar a sua família e conseguir algum dinheiro para ir para Lima estudar.
Caso a sorte estivesse com ele, a meio da conversa começaria a pedir moedas dos países de origem – para puder observar o dinheiro que tinham na carteira -, canetas, algumas vezes sóis e outras conseguia convencer os estrangeiros a pagarem-lhe uma refeição.
Muitas vezes nem sequer falava com eles, apenas sentava-se à sua beira, seguia-os, forçando-os a pagarem-lhe uma refeição, jurando que não os chatearia mais, depois. Esta sua táctica valeu-lhe a alcunha de “Cola-sapatos”.
Os seus pais tinham sido os incentivadores a ele trabalhar e estudar ao mesmo tempo, sendo nos últimos tempo uma exigência, porque o dinheiro fazia muita falta. Tinha mais um irmão, tinha nascido há apenas quatro meses, apenas um dos seus irmãos o podia acompanhar nesta vida de engraxador, pois os outros ainda eram muito novos.
O que o acompanhava tinha apenas dez anos, ele era o mais velho entre cinco irmãos, sendo responsável por todos eles. Nos últimos tempos, o seu irmaozito, andava com ele para aprender os troques de ser um bom engraxador. Como ainda era muito criança, tinha que o entreter muitas vezes com as estórias que inventava para os turistas, que raramente tinha a oportunidade de lhes dizer e com isso tinha desenvolvido uma imaginação muito fértil. Provavelmente devido a isso, tinha-se inscrito numa peça de teatro na escola, onde descobriu que se sentia bem em palco, para além de ter sido o arquitecto de quase toda a peça. Desde aí, o reitor da sua escola, nomeou-o como o novo director artístico, encarregue de escolher as peças a representar todos os anos e de fazer os casting para escolher os actores por entre os seus colegas.
Poderia ser que um dia, um dos estrangeiros que apanhasse na rua, aceita-se que ele lhe engraxasse os sapatos e como recompensa lhe pagasse os estudos numa escola de artes cénicas em Lima. Sonhar nunca fazia mal e um dia destes representaria-o na escola, numa peça de teatro.